Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 23 de setembro de 2012

Dredd (2012): longa baseado em HQ britânica surpreende por sua qualidade

Estando para a versão cinematográfica de 1995 como "Batman - O Cavaleiro das Trevas" está para a série de TV de 1966 do Morcego, o filme reapresenta o Juiz para um novo público e reflete os problemas das grandes cidades do mundo com um espetáculo sangrento de tiros e pancadaria.

A maior parte do público brasileiro provavelmente não lembra do Juiz Dredd como um ícone dos quadrinhos ingleses, mas sim como o protagonista de um filme tosco, porém relativamente divertido, lançado em 1995 e estrelado por Sylvester Stallone. Uma nova leitura do universo do magistrado de capacete é apresentada neste “Dredd”, com uma pegada bem mais seca e brutal.

É o próprio personagem quem apresenta o mundo pós-apocalíptico no qual está inserido. Após um hecatombe nuclear, os EUA foram quase totalmente reduzidos a uma Terra Amaldiçoada, onde nada pode prosperar. A exceção é a megalópole Mega City One, que compreende várias das antigas grandes cidades estadunidenses. Lá, a lei é mantida pelos Juízes, um grupo militar que também exerce a função de jurados e executam imediatamente as suas sentenças, muitas vezes capitais.

Na trama, Dredd (Karl Urban) e a juíza novata Anderson (Olivia Thirlby), que está sob sua avaliação, são enviados a uma imensa favela vertical para investigarem um assassinato. No entanto, essa ocorrência de rotina se transforma em uma luta pela sobrevivência quando os dois se veem caçados pela traficante Ma-Ma (Lena Headey), principal distribuidora da droga Slo-Mo e uma mulher capaz de tudo para manter-se no topo.

A nova versão do protagonista-título é um reflexo do cenário onde ele está estabelecido. Esta Mega City One, concebida pelo roteirista Alex Garland (“Extermínio”, “Sunshine – Alerta Solar”) e pelo cineasta Pete Travis (“Ponto de Vista”), passa longe do mash-up brega de clichês futuristas da antiga produção noventista e surge como um verdadeiro inferno urbano em cores quentes e saturadas, o que ressalta sua natureza dantesca.

Mesmo tendo sido construída tendo como base Johanesburgo, a cidade podia ser uma versão distópica (porém verossímil) de qualquer metrópole contemporânea, tendo problemas com a criminalidade e corrupção que espelham o que sofremos no cotidiano, mesmo de modo hiperbólico. Por mais rápida que seja a vista do cenário geral, ele explica muito da personalidade violenta e pragmática do anti-herói.

Já no prédio onde a maior parte da ação se passa, o cotidiano de famílias inocentes é misturado com a proliferação do crime organizado, nada muito diferente do que vemos em comunidades abandonadas pelo Estado no Brasil, com pessoas de bem pegas no meio do fogo cruzado entre “mocinhos” e “bandidos”.

O ambiente de trabalho dos juízes nos lembra de que estamos em um universo mais calcado no nosso, bem diferente da fita estrelada por Stallone. Sai o computador com inteligência artificial e voz sexy e entra uma central de operadores pronta para despachar os magistrados para onde eles são necessários.  Mesmo a existência de humanos mutantes é tratada de um modo que remete ao preconceito e segregação que ainda afligem o mundo em pleno século XXI., sendo especialmente significativo que a fotografia principal tenha sido realizada na África do Sul.

Esses elementos montam o quebra-cabeça que é a personalidade de Dredd, tendo em vista este ser, por natureza, um personagem fechado. Ele é um reflexo de sua cidade e de seu ambiente, um verdadeiro anticorpo desse organismo, pronto para agir para a proteção deste e daqueles que considera “inocentes”, sem piedade dos infratores da lei.

Karl Urban encarna o Juiz de modo calculado e inteligente. Com metade de seu rosto coberto, tornando impossível a visibilidade de seus olhos, Urban compõe Dredd de modo soberbo. Enquanto sua voz e expressões faciais expressam a ira controlada do magistrado, sua movimentação corporal mostram como tais sentimentos se traduzem em uma postura militar absolutamente precisa. Assim como o filme que leva seu nome, Dredd não tem tempo para sentimentalismo, não quando há uma missão a ser cumprida. Impiedoso, infalível e incorruptível, percebe-se nele o amargo remédio para os problemas que assolam as ruas.

Do mesmo modo que o protagonista, a Ma-Ma de Lena Headey é uma filha de Mega City One. Já acostumada a viver mulheres fortes, como Gorgo, Sarah Connor e Cersei, Headey se mostra à vontade na pele da sádica e assustadora rainha do tráfico, uma ex-prostituta que vive em um mundo onde o mais simples ato de gentileza pode significar fraqueza. Em certo momento da projeção, transparece nela um minusculo relance de hesitação, logo substituído por uma resolução quase animalesca, primal, em um maravilhoso trabalho de sua intérprete.

Temos, então, a Juíza Anderson, vivida por Olivia Thirlby. A despeito de se candidatar para uma organização cujos métodos são, no mínimo, questionáveis, seus motivos são puros e sua atuação não é pautada pela leitura fria da lei como Dredd, se guiando também pela humanidade. Seu relacionamento com ele é, para os padrões do juiz veterano, deveras carinhoso.

Mesmo sendo um professor “difícil”, Dredd vê na novata um pouco da inocência que ele tanto deseja proteger e que há muito perdeu, algo que acaba vazando para o público, aumentando a simpatia para com ele. Nada mais natural, pois Anderson está lá representando a audiência, tanto é que seu poder de ler mentes reflete a própria plateia em seu olhar voyeurístico.

Interessante notar que, ao contrário do que acontece em, por exemplo “Resident Evil – Retribuição“, a narrativa de “Dredd” remetendo aos games realmente funciona. Com os personagens presos em um prédio tendo de passar por diversos níveis para chegar ao topo e enfrentar o “chefe final”, a montagem rápida da produção explora e maximiza a fusão entre as duas mídias, que consegue até mesmo equilibrar a violência do longa, cujas cenas de ação são deveras gráficas, justificando sua alta classificação indicativa.

O diretor Pete Travis ainda se utiliza de saídas visuais criativas para ilustrar os efeitos da droga Slo-Mo, justificando o (bom) uso da câmera lenta pelo cineasta. Esse artifício, aliás, valoriza plasticamente os enquadramentos das cenas de ação e o impressionante 3D da produção, que funciona não só como ferramenta para contar a história, mas também para fortalecer o aspecto visual da fita.

Situando os personagens em ambientes fechados, Travis ressalta, por meio da tridimensionalidade, a sensação claustrofóbica dos ambientes que servem de cenário para os tiroteios, algo especialmente presente na sequência que se passa em um laboratório de drogas. É uma pena que a imaginação que o diretor teve na parte visual não se reflita na trilha sonora eletrônica, deveras genérica, sendo o único elemento que empalidece em comparação com a adaptação anterior do personagem para a telona.

“Dredd” consegue ser não só uma adaptação efetiva de um personagem complicado dos quadrinhos, como também um ótimo filme de ação com uma alegoria dos tempos atuais que, certamente, terá um apelo catártico no público das cidades mais assoladas pela criminalidade.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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