Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 08 de janeiro de 2012

Janela Indiscreta: uma das principais realizações de Alfred Hitchcock

Além do lado técnico impecável, longa também é um bom entretenimento.

Poucos são os cineastas que detém um completo e seguro conhecimento sobre a linguagem cinematográfica. Alfred Hitchcock foi um deles. Seu domínio sobre as possibilidades de manipulação técnica a serviço da arte é demonstrado na grande maioria de suas obras, entre elas, “Janela Indiscreta”. O filme conta a história de L. B. Jefferies (James Stewart), um fotógrafo que sofre um acidente de trabalho e é obrigado a ficar de repouso durante um certo período. Incapacitado de se movimentar livremente, Jeff passa a maior parte do tempo em uma cadeira de rodas, observando sua vizinhança através da janela de sua casa. Durante suas observações, ele começa a desconfiar que um de seus vizinhos matou a esposa.

Desde o começo, é fácil perceber a habilidade do diretor no trabalho das imagens como fonte principal de construção narrativa. Trata-se de uma sequência na qual somos apresentados à vizinhança onde ocorre toda a trama e, em seguida, ao protagonista. O gesso na perna com a inscrição “aqui jazem os ossos quebrados de L. B. Jefferies” já deixa claro quem ele é e em que estado se encontra. Logo depois, uma câmera fotográfica quebrada e fotos de um acidente nos revelam o que ele faz e o que aconteceu com ele. Isso contribui bastante para o ritmo do filme, uma vez que o primeiro ato resolve tais questões explicativas logo na primeira sequência, fornecendo tempo para desenvolver o personagem a partir do momento em que suas ações afetam diretamente o desenrolar da história.

O padrão do movimento de câmera dessa primeira sequência é repetido diversas vezes durante o filme: uma panorâmica mostrando os apartamentos vizinhos e, em seguida, um recuo que mostra Jeff e revela de onde parte essa visão. A opção por essa constante é talvez um dos maiores méritos da direção de Hitchcock na obra porque ao mesmo tempo em que estabelece uma coesão narrativa, servindo como ponto de apoio para toda a trama, remete ao significado da própria prática de observação/espionagem do protagonista.

Isso é apontado em uma das cenas em que Jeff conversa com sua namorada Lisa (Grace Kelly), enquanto ambos olham os vizinhos pela janela. É como se cada morador fosse uma projeção de algum conflito interno de Jeff: o pianista que mora sozinho representa o tipo de vida que ele almeja, com liberdade e descompromisso; o casal recém-casado remete à sua constante discussão com Lisa sobre esse tema; a “Sr. Coração Solitário” representa seu medo de ficar sozinho e infeliz pelo resto da vida, caso não se case com Lisa; e a bailarina, uma bela jovem que vive rodeada por homens, é como Jeff imagina que seja a vida de sua namorada. Dessa forma, não é à toa que a câmera sempre recua para dentro do apartamento do protagonista após um passeio por cada uma das janelas alheias, como se estas fossem internalizadas.

Ainda neste sentido, o único momento além do clímax em que o ponto de vista sai do apartamento em alguns planos é na cena da morte do cachorro. Na sequência, a dona do animal acusa os vizinhos de o terem matado e fala sobre como eles devem se gostar em vez de cometer tais atos. A câmera não é alheia ao drama da personagem, atrevendo-se a compor planos mais fechados que mostram a face de alguns dos coadjuvantes, antes vistos somente em planos abertos. Talvez esta seja a cena mais importante do filme, pois além de servir como ponto de virada para a trama, dialoga com o próprio espectador por meio da crítica a uma sociedade que evolui de modo cada vez mais individualista. Isso fica evidente no final desta sequência, quando todos os que saíram para a sacada de seus apartamentos e escutavam surpresos ao monólogo da dona do cachorro simplesmente retornam a seus afazeres como se nada tivesse acontecido.

Porém, é no clímax que Hitchcock mostra sua verdadeira marca. A tensão construída se baseia no tradicional desenvolvimento de dois eventos simultâneos e interligados, muito trabalhado por D. W. Griffth nos primórdios da sétima arte: algo de ruim está prestes a acontecer enquanto a salvação corre para impedir. Entretanto, em Griffith, esta tensão é construída revelando ambos os eventos através da montagem paralela; já Hitchcock optou por fixar a atenção só no evento trágico que está perto de acontecer – também para manter todo o filme no mesmo ambiente, a vizinhança –, mas sem deixar de fornecer informações ao espectador que pessoas estão a caminho desta situação para impedi-la. Isso torna o evento ainda mais tenso, pois não sabemos o quão perto ou longe essas pessoas se encontram.

Alfred Hitchcock soube lidar com a linguagem cinematográfica como poucos porque explora ao máximo cada situação do filme, estendendo sua utilidade narrativa para mais de uma função. “Janela Indiscreta” é sempre lembrado como um dos melhores filmes do diretor, servindo ao mesmo tempo como fonte de estudo técnico e como ótimo entretenimento.

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Thiago César é formado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mas aspirante a cineasta. Já fez cursos na área de audiovisual e realiza filmes independentes.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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