Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Lixo Extraordinário

Artista plástico Vik Muniz apresenta um trabalho pretensioso, mas consegue um resultado satisfatório e emocionante ao levar a arte para os catadores de lixo do Aterro Sanitário do Jardim Gramacho.

É extremamente pretensiosa a história que dá início à “Lixo Extraordinário”, um filme rodado no Aterro Sanitário de Gramacho que mostra o cotidiano dos catadores de lixo. A ideia do artista plástico Vik Muniz era o de conseguir visitar aquele lugar para mudar as vidas das pessoas. Uma ideia bastante arriscada. Morando em Nova York, Vik começou a construir o seu projeto para retratar os catadores de lixo do Aterro Sanitário de Gramacho, considerado o maior do mundo, por meio de retratos que pudessem definir as suas personalidades.

Ao chegar até a região do aterro, Vik começa a conhecer as pessoas e vamos percorrendo os seus passos na construção do seu projeto. E tudo é feito por meio de uma montagem extremamente bem construída. Os diretores do documentário colocam a câmera em meio ao lixo que é despejado diariamente no aterro. Aos poucos, Vik Muniz começa a selecionar os seus personagens para participarem dos retratos que seriam feitos por eles mesmos. No fim das contas, Vik funciona apenas como uma pessoa que está ali para mostrar o caminho para aquelas pessoas que ele acaba selecionando em meio aos outros. No início do filme, ele mesmo fala que chegou um momento em sua vida em que ele deseja fazer arte para ajudar as pessoas, para mudar a realidade de algum lugar.

A desconfiança em um determinado momento inicial do documentário se dá por esta pretensão. Nos perguntamos se aquilo é mesmo possível e, principalmente, se a chegada de Vik Muniz com esta ideia e este projeto poderá realmente fazer bem àquelas pessoas. E o mais importante é que, em “Lixo Extraordinário”, temos a sensação de que todas as coisas construídas por eles mesmos, sob o comando de Vik Muniz, mudaram as vidas deles para sempre. É emocionante ver como Tião, o presidente da Associação de Catadores de Lixo do Aterro Sanitário de Gramacho, se emociona ao falar que Deus foi muito bom com ele; ou ainda a senhora que, depois de tanto tempo trabalhando no aterro, se muda para um lugar mas acaba voltando para lá pois sentia saudade dos seus amigos; e também o outro lado, da mulher que não deseja voltar para ali nunca mais.

As realidades se misturam por meio da montagem bem construída do longa. Ao mesmo tempo em que vemos Vik Muniz conversando com as pessoas e construindo o seu projeto, é arrebatador como aquelas pessoas trabalhavam no aterro disputando o lixo em meio aos urubus. E quando aqueles dejetos eram despejados, todos corriam para conseguirem catar o lixo que eles precisavam para serem reciclados. Por sinal, ao tratar da reciclagem, “Lixo Extraordinário” abre caminho para um filme que também tem o intuito de conscientizar a população. E não estou aqui dizendo que o longa vai fazer com que você saia por aí já dividindo e jogando o lixo no lixo. Mas, com certeza, o documentário pode começar a criar na mente de cada um a importância deste lixo para as pessoas que estão ali naquele aterro, tentando sobreviver e lutar contra as dificuldades da vida.

Como o próprio Vik Muniz diz em uma determinada cena, eles foram parar ali porque lhes faltou sorte na vida. E isso fica claro quando eles começam a contar as histórias, de como perderam os seus pais e foram para lá tentar uma oportunidade. Alguns poderiam estar se prostituindo, roubando ou partindo para o tráfico de drogas. Mas, ao invés disso, estão ali em meio àquele lixo para ganharem, ao final do dia, os R$ 50 que ajudarão a viver e a continuar vivendo. Por outro lado, é triste quando Tião relata que o pagamento dos catadores, uma quantia de R$ 12 mil que seria dividida entre eles, foi completamente roubada. E isso faz com que ele próprio duvide do trabalho que ele desempenha como presidente da associação. Algo que logo é desmistificado quando Tião enxerga que, o trabalho realizado por ele e por Vik começa a dar certo e resultados positivos para que aqueles catadores possam sonhar com uma vida melhor para eles mesmos e as suas famílias.

Certa vez, o diretor brasileiro Marcos Prado também investigou o trabalho que é feito no Jardim Gramacho, na cidade de Duque de Caxias. No documentário “Estamira”, uma mulher de 63 anos que sofre de distúrbios mentais vive e trabalha há 20 anos no aterro. Ela é tachada como louca pela família e pelos médicos mas, na verdade, por trás da insanidade em que ela aparenta ter esconde uma lucidez incrível. Tendo uma infância difícil e uma vida bastante sofrida ela encontrou, assim como todos que estão no aterro, uma possibilidade de sobrevivência. Estamira, a mulher, se parece com um dos personagens do filme “Lixo Extraordinário”. Um senhor já de idade que trabalha no lixão há mais de 20 anos. Sem estudo qualquer, ele tem uns pensamentos de extrema importância que podem ajudar a conscientizar as pessoas a jogarem os lixos nas lixeiras e a separarem este material para que possam ser devidamente reciclados. É uma pena que a sua história não pôde ter sido contada até o final, pois ele morre vítima de um câncer.

A diferença entre “Estamira” e “Lixo Extraordinário” é que, neste trabalho de Lucy Walker, Karen Harley e João Jardim, é possível também acompanhar o próprio projeto que serviu de inspiração para a história do documentário. Além disso, com uma direção visceral destes cineastas supracitados, o músico Moby compõe uma trilha sonora que é elevada por sons diferentes e não-comuns que se embaralham em diversos tons. Em alguns momentos, Moby apela para uma guitarra que parece desafinada e faz com aquele som possa ecoar profundamente na nossa alma, ao mesmo tempo em que vemos cenas incríveis do lixo que é despejado no aterro. Por outro lado, Moby também apresenta outros momentos de pura criatividade, ao dar para a narrativa um embalo sonoro que consegue também ser um elemento narrativo importante para a história.

Porém, o que mais impressiona no longa é a exposição de uma história que é contada com muita humanidade e, principalmente, de forma bastante sensível. Não é uma sensibilidade que está ali para apelar ao choro. Os acontecimentos se dão de forma tão natural que, a cada depoimento prestado por uma daquelas pessoas, é uma oportunidade de perceber que o ser humano erra, acerta, se recupera, se arrepende e pode até errar novamente. Mas todos estão imbuídos por um único sentimento: de buscar a felicidade e melhorar as suas vidas. “Lixo Extraordinário” é um filme emocionante e o trabalho de Vik Muniz é tão extraordinário quanto a própria história.

Vik colocou na cabeça a ideia de que poderia mudar a realidade deles. Ele só não estava preparado, talvez, para também ser completamente transformado pela convivência e beleza daquelas pessoas com as quais ele tanto aprendeu.

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Vinícius Silva é crítico do CCR desde 2010. Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Jorge Amado, em Salvador, foi repórter durante dois anos do Jornal Correio e faz do cinema uma parte integrante da sua vida.”

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