Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de janeiro de 2011

Deixe-me Entrar

Correndo o alto risco de ser taxado como inferior, o remake consegue conquistar principalmente aqueles que conhecem a obra original.

Todos sabem que “Deixe-me Entrar” é baseado no excelente “Deixe Ela Entrar”, do diretor, escritor e roteirista sueco John Ajvide Lindqvist. Se comparar parece a palavra certa aqui, vou tentar ir por outro caminho e simplesmente dizer que uma obra completa a outra, como um universo paralelo, onde tudo parece familiar, mas a diferença nos detalhes existe e é claramente perceptível, o que deixa tudo muito mais interessante.  O filme conta a história de um ciclo que se repete há mais tempo do que podemos imaginar. A sede inusitada de uma doce garota pode mudar o destino daqueles que estão ligados a ela.

O diretor Matt Reeves, que possui o menor, mas funcional “Cloverfield – Monstro”, em seu currículo, aparece inventivo, trabalhando estilos diferenciados, como o desfoque continuo ou o desfile de reflexos sempre estrategicamente posicionados, demonstrando um olhar atento e principalmente criativo em suas cenas. A fotografia queimada de amarelo é bela e ao mesmo tempo crua, assim como a história. A clareza de suas externas é digna de filmes europeus, nada mais justo.

Reeves também recebe os créditos de roteirista da obra, ao lado do autor original. Suas percebidas linhas trazem uma ênfase enriquecedora para as cenas de impacto e também para o envolvimento psicológico dos personagens, focando a paixão infantil e pura de um garoto que se confunde com o amor deturpado e dependente daquele que se considera um guardião. A servidão está presente nas relações da jovem Abby, vítimas são necessárias para sua existência incompreendida.

Kodi Smit-McPhee, que já possui uma carga dramática respeitável adquirida em excelentes filmes como “Romulus, Meu Pai” e “A Estrada”, se mostra confortável como o tímido Owen. Sua quietude esconde um garoto deprimido pela rotineira e enfadonha vidinha no interior do Novo México em 1985. Sua revolta interna surge nas constantes agressões que sofre na escola, um bullying que aceita calado, contradizendo assim seus instintos de preservação. Sua relação com a família, desestruturada pelo divórcio, só exemplifica que ele tem muito pouco para aprender em casa, fato inteligentemente fortalecido pela falta de rosto de sua mãe.

Já a maturidade da atriz mirim Chloe Moretz chama a atenção. Quem a viu em “Kick-Ass : Quebrando Tudo”, sabe que a garota possui uma idade mental muito além de seu rosto de criança, algo extremamente conveniente para o papel de Abby. A menina da fita parece perdida no escuro, seguindo aquilo que seu instinto já lhe ensinou ser o correto. A naturalidade da atriz por vezes esbarra em sua precoce ascensão ao mundo do cinema, mas nada que prejudique o plano geral, na verdade ela dá um show e se sai melhor do que atrizes que andam por aí cheias de caras e bocas.

O “dublê” de Robert De Niro, Elias Koteas, aparece como o policial obstinado que tenta entender os acontecimentos bizarros que rondam sua cidade. Pouco de seu personagem é explorado, mas sua participação funciona e serve para que os fatos sejam amarrados de forma satisfatória. Richard Jenkins tem poucas cenas, mas todas contundentes. Seu personagem pode ser considerado um dos mais complicados. Com um envolvimento deturpado, que nem mesmo Freud explica, o homem misterioso faz parte de algo maior, uma evolução da cadeia alimentar a qual está preso sem saber como se desvencilhar. Na verdade ele não quer isso, na verdade ele já não pode.

A violência de “Deixe-me Entrar” é constante e necessária, mas o enfoque dado sempre demonstra que o sentimento de preservação da vida alheia não é uma escolha. A distorção psicológica, efetuada pelos garotos da escola em cima de Owen, acaba por vezes sendo mais forte do que uma jugular cortada. A maldade infantil é explorada de forma auspiciosa, assim como todas as interações dos personagens.

“Deixe-me Entrar” não é melhor e nem pior do que a obra original. Para quem assistiu ao longa de 2008, a proposta se mostrará inteligente e a percepção mais apurada de diversos elementos será notada com facilidade. Enquanto o mundo atualmente se perde em histórias vazias daqueles que bebem sangue para se manter mortos eternamente, este longa é um presente para os admiradores do tema. Um cenário criativo e respeitável dentro de uma mitologia rica em significados e sentimentos.

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Ronaldo D’Arcadia é jornalista, músico de ocasião, gamer, cinéfilo, crítico e fã. Gosta de assistir dramas reais e acha que a vida é incrível demais para ser verdade. Já falou bastante sobre música, agora finalmente se aventura pelas salas de cinema. É um rapadura desde 2009.

Ronaldo D`Arcadia
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