Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 26 de março de 2011

Sucker Punch – Mundo Surreal (2011): fetichista, divertido e com visual espetacular

Visualmente arrebatador, o longa é uma divertida ode à cultura pop, embora seu conteúdo esteja longe de ser tão impressionante quanto sua estética.

Na clássica HQ “A Piada Mortal”, de Alan Moore, o Coringa afirma que a loucura é a saída de incêndio da realidade. Para o príncipe palhaço do crime, quando o mundo se torna insuportável, as fantasias e a insanidade são a única válvula de escape do ser humano. Aparentemente, Zack Snyder concorda com o vilão. “Sucker Punch – Mundo Surreal”, primeiro trabalho autoral do cineasta (que é co-escritor do projeto), nos leva aos delírios visuais de uma garota perdida em meio às tragédias de sua vida.

Tais ilusões, que, não se engane, são as verdadeiras estrelas da produção, são alimentadas não apenas por gêneros cinematográficos, mas pela cultura pop em geral. Cinema, música, games, quadrinhos… Partes de todas essas mídias serviram de fonte para Snyder criar as válvulas de escape de sua Baby Doll (Emily Browning), moça atormentada que, após a morte de sua mãe, se viu vítima de uma tragédia causada pelo seu ganancioso padrasto (Gerard Plunkett).

Levada a um sanatório controlado pelo corrupto Blue (Oscar Isaac), em cinco dias a garota será vítima de uma lobotomia. No entanto, acabamos por ver Baby Doll em um lugar diferente, um bordel onde suas danças exuberantes e imaginação podem trazer sua libertação. Guiada por um “Homem Sábio” (Scott Glenn) e auxiliada por outras internas do lugar, Baby Doll tem um ousado plano de fuga da instituição para escapar de seu destino cruel, tendo de cumprir determinadas missões para cumprir seu destino.

A estrutura que o diretor cria para seu filme é inusitada. Como em um game, ele divide sua película em fases, nas quais o ápice são as danças de Baby Doll, performances que transportam a nós (e aos demais personagens) para mundos diferentes enquanto o plano das garotas se desenvolve. Snyder nos trata como fossemos os vilões da fita, que devem ser distraídos e deslumbrados pelo que vêem enquanto as meninas trabalham em seu plano de fuga.

O longa nos leva por passeios a versões steampunk de filmes de samurais, guerra, fantasia e ficção científica, brincando muito bem com cada um desses gêneros e inserindo elementos de cada um deles de maneira orgânica em sua narrativa. Se trata de uma fita que nos consegue mostrar orcs, soldados-zumbi, robôs e dragões sem perder sua coerência interna. Só isso já dá créditos ao diretor e seu co-roteirista, o novato Steve Shibuya.

Claro que tal estrutura acaba por ter seu efeito negativo, pois sabemos que o que vemos está se desenrolando apenas na mente de Baby Doll, o que acaba tirando boa parte da dramaticidade das cenas (com exceção da sequência sci-fi), mas não seu impacto estético. As cenas de ação são simplesmente lindas, muito bem coreografadas e com um visual de tirar o fôlego, dando vontade de conferir o artbook do filme o mais rápido possível.

A direção de arte, responsabilidade de Patrick Banister e Todd Cherniawsky, bem como o design de produção, que ficou nas mãos de Rick Carter, são extremamente eficientes, com os objetos de cena e a estrutura dos cenários dialogando não apenas com os pontos da cultura pop que a película resgata, mas também com as próprias realidades mostradas no decorrer do longa. Elementos como o figurino dos personagens, isqueiros, mapas, facas e até o próprio cenário são transformados na mente de Baby Doll de maneira que ainda podem ser reconhecidos, mesmo em suas formas fantásticas, pelo espectador.

Larry Fong volta a trabalhar como cinematógrafo em mais uma produção de Snyder. Fong investe em cores frias e sem vida para o “mundo real” tortuoso de Baby Doll, passando a trabalhar com tons mais quentes quando o sanatório se transforma no bordel e estilizando ainda mais a paleta de cores nas cenas das “danças”, voltando as imagens para uma tonalidade fria e preenchendo a tela com uma beleza devastada, algo que funciona para a proposta de tais sequências. Interessante notar que, mesmo com os diversos “mundos” do filme, as identidades visuais de cada personagem permanecem, como variações do mesmo tema.

A trilha sonora ajuda na atmosfera musical. No entanto, os temas de Tyler Bates acabam eclipsados pelas canções muito bem escolhidas para a fita. Björk, Emiliana Torrini, mixes do Queen e até a própria atriz Emily Browning são os destaques musicais, dando os tons certos aos momentos-chave da trama. Browning, aliás, se sai muito bem em sua versão de “Sweet Dreams”, que embala o forte prólogo do filme.

Snyder acerta ao apenas sugerir a primeira dança de Baby Doll, mas escorrega feio com um número musical estrelado por Oscar Isaac e Carla Gugino, totalmente dispensável e sem sentido nenhum para a narrativa, tanto que fora relegado aos créditos finais.

Por falar em escorregos, o cineasta, volta e meia, exagera no uso da câmera lenta, lançando mão deste recurso até para mostrar uma panela de batatas caindo. Mas o recurso é necessário aqui e, quando usado nos momentos certos, a sensação que temos é a de estar acompanhando uma HQ, que congela aquela ação específica para valorizar a arte do movimento. Afinal, lembremos que cada uma daquelas sequências são, de fato, danças e o único momento em que uma delas é interrompida tem consequências trágicas.

Das cinco heroínas de “Sucker Punch”, apenas três são bem desenvolvidas. Acompanhamos a tragédia sofrida por Baby Doll, nos compadecemos por seu sofrimento e entendemos a razão de seus delírios, algo primordial para “compremos” a premissa do filme. Muito disso se deve à escalação mais do que correta de Emily Browning para o papel. A linda atriz parece mesmo uma frágil bonequinha de porcelana e o longa ressalta sua diminuta figura, sempre a contrapondo com figuras masculinas bem mais imponentes.

As personagens Sweet Pea e Rocket funcionam como um espelho da tragédia familiar de Baby Doll. Interpretadas, respectivamente, por Abbie Cornish e Jena Malone, as irmãs são um dos poucos centros dramáticos do filme, com as atrizes tendo uma bela química em tela e conseguindo envolver o público de maneira efetiva.

O mesmo não se pode dizer da apagada Jamie Chung, que dá vida a Amber, e de Blondie, vivida por Vanessa Hudgens. A culpa não pode nem ser atribuída às atrizes, já que as duas não possuem nenhuma história de fundo ou desenvolvimento com que trabalhar, estando as garotas ali apenas por sua beleza, principalmente Chung, que personifica o fetiche masculino por garotas asiáticas. Tanto é assim que há um plot twist envolvendo Blondie que soa até forçado, já que simplesmente não conhecemos a personagem.

Carla Gugino se mostra bela como sempre e bastante adequada (principalmente com seu sotaque meio forçado, mas estranhamente sensual) na pele da Dra. Gorski, uma personagem bastante submissa na versão que Baby Doll cria de sua psiquiatra, versão esta que domina boa parte da projeção. Scott Glenn surge um tanto quanto caricato na figura do “Homem Sábio” que guia Baby Doll em sua busca, mas acho que esta era a intenção de Snyder, criar apenas um arquétipo de guru, não um personagem pleno. A escolha é compreensível, mas é esquisito ver o ator tendo de verbalizar tantos chavões.

Com exceção de Glenn e de uma ponta rápida de Jon Hamm, os homens vistos em cena são figuras repugnantes, que surgem apenas para impor (mais) terror à vida das garotas. Em alguns deles, como o padrasto, o cozinheiro e o prefeito, as falhas de caráter “vazam” para o próprio visual dos personagens. Todos os vilões são bastante unidimensionais, principalmente Blue, encarnado por Oscar Isaac, que chegou a me lembrar bastante o Buck, o enfermeiro de “Kill Bill – Volume I”.

No fim das contas, Zack Snyder mostra-se um cineasta quase tão fetichista quanto Quentin Tarantino, mas sem a elegância deste último. “Sucker Punch – Mundo Surreal” não é um filme que preza por sua narrativa, mas um longa sobre a paixão de seu diretor/roteirista pela cultura pop. É um divertido e visualmente arrebatador exercício de estilo, não devendo ser visto como nada além disso.

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Thiago Siqueira é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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