Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 27 de julho de 2009

Inimigos Públicos

"Inimigos Públicos" tem muito em comum com outro grande filme de Michael Mann, "Fogo Contra Fogo", até mesmo por serem filmes maravilhosos estrelados por grandes atores em papéis antagônicos. Mas o que torna este filme de gângsteres ainda mais interessante é o fato de se passar em um período em que os valores morais são invertidos e onde tudo parecia de pernas para o ar.

Estamos nos EUA em 1933, em plena época da grande depressão. Os bancos americanos estão executando diversas hipotecas, tomando casas e fazendas por todo o país, deixando um verdadeiro exército de desempregadas e desabrigadas. Não foi à toa que John Dillinger se tornou um herói para essas pessoas, roubando das instituições financeiras e não daqueles que estas oprimiam. É para este homem que Johnny Depp empresta seu carisma e sua figura, sendo um dos vários motivos pelos quais "Inimigos Públicos" se torna imperdível.

A história do longa mostra Dillinger sendo declarado o inimigo público número um dos Estados Unidos pelo líder do FBI, J. Edgar Hoover (Billy Crudup). Para liderar a caça ao criminoso é apontado o agente Melvin Purvis (Christian Bale), um homem de moral e senso de justiça que vê em Hoover um exemplo a ser seguido. Enquanto isso, Dillinger aproveita a vida, com seu gosto por mulheres, carros e emoções, seguindo um código de honra próprio. Mesmo se apaixonando pela bela Billie Frechette (Marion Cotillard), ele não pretende sair de sua "carreira" tão cedo. Mas, com o cerco sobre si fechando, o criminoso e o agente terão suas existências alteradas para sempre, graças aos eventos que começam a se desenrolar.

Ao contrário de "Fogo Contra Fogo", longa no qual Mann mostrou em detalhes a vida pessoal de seus protagonistas, o foco principal de "Inimigos Públicos" raramente se desvia de Dillinger. O roteiro, escrito por Mann em colaboração com Ronan Bennett e Ann Biderman, mostra o seu personagem principal como um fora-da-lei extremamente vaidoso e ciente de caráter de suas ações. Porém, ao mesmo tempo, o vemos como um homem honrado (de seu próprio modo) e amoroso, colocando-o como o grande herói da trama, mas não fazendo de todos os criminosos mocinhos, vide Baby Face Nelson (Stephen Graham), um gângster que tinha Dillinger como exemplo, mas que era um verdadeiro psicopata.

Depp reconhece isso e se mostra tremendamente à vontade no filme, realmente encarnando seu personagem de maneira apaixonada. Suas cenas com a belíssima Marion Cotillard são incrivelmente tocantes e ambos possuem uma química fabulosa, com a atriz mostrando que é bem mais do que uma mera companheira de cena para Depp, mostrando o que faz de Billie "o verdadeiro amor" de Dillinger. Realmente acreditamos no amor existente entre os dois, algo fundamental para que as motivações do protagonista sejam compreendidas pelo público.

Em uma belíssima amostra da capacidade de Depp em mostrar os sentimentos de um personagem de modo sutil, sua cena no cinema, assistindo a um gângster cinematográfico vivido por Clark Gable, se enxergando na filosofia deste ("Saia do mundo do mesmo jeito que entrou: subitamente") e vendo o seu amor por Billie refletido na tela é bastante clara em mostrar o caráter do personagem. Com simples sorrisos de canto de lábio, o ator nos proporciona um dos momentos mais emocionantes do cinema de ação recente.

Tanto Dillinger quanto Melvin Purvis terminam por terem de se aliar a indivíduos que não compactuam com os seus princípios. Purvis acaba sendo pouco explorado em seu íntimo. Apesar de ser mostrado como um homem de valor, ele frequentemente tem que tomar ações que vão contra suas crenças morais para alcançar seus objetivos, sempre seguindo as ordens do dúbio J. Edgar Hoover, que é um político antes de ser um homem-da-lei.

Em cenas bastante poderosas, vemos Christian Bale em um ótimo diálogo com Crudup sobre os métodos de ação a serem usados pelo FBI e, algum tempo depois, percebemos o seu choque ao perceber quão longe um colega foi para obter informações sobre um alvo. Bale reconhece que é um coadjuvante no projeto, mas não demonstra menos empenho em seu papel, defendendo Purvis vigorosamente no filme, mostrando sua quieta indignação perante um mundo totalmente fora dos seus padrões de ética.

O uso de câmeras de alta resolução por parte de Michael Mann acaba por, inicialmente, incomodar um pouco o espectador, já que a fotografia parece digital demais para um filme de época. No entanto, somos conquistados pela cinematografia do longa, que se mostra vital para as cenas de tiroteio noturnas, além de acrescentar um escopo maior às cenas com planos mais aberto.

Mann utiliza sua câmera como poucos, com seu uso de plano e contraplano do diálogo entre Dillinger e Purvis remetendo a uma cena similar entre Pacino e De Niro em "Fogo Contra Fogo". No entanto, o diretor acrescenta elementos visuais ao "confronto vocal" Depp/Bale como a divisão entre os dois na tela por uma barra e o plano acompanhando a movimentação de Dillinger por trás deste. A fita ainda ganha mais pontos por sua beleza visual graças à bela reconstrução deste marcante período da história estadunidense, com figurinos e direção de arte impecáveis.

Quanto às sequências de ação, estas são espetaculares. Cada tiro de espingarda ou das "Tommy guns" dos personagens é sentido por nós de maneira forte, não só por conta da maravilhosa edição de som da película, mas por conta do impacto que Mann atribui visualmente aos disparos, mostrando que cada um deles pode acabar com a vida de alguém. Além disso, o cineasta consegue ambientar as trocas de tiros em ambientes totalmente diversificados, evitando que as cenas de ação se tornem monótonas.

A bela trilha sonora da produção mistura Jazz e tons mais agitados, com estes sendo um amalgama entre Blues e Rock. Notem os temas orquestrados que chegam a remeter às grandes composições de Ennio Morricone para os faroestes de Sergio Leone. Os fãs de Jazz ainda notarão uma pequena ponta da cantora Diana Krall na cena onde Dillinger e Billie se encontram pela primeira vez.

Tão moralmente complexo quanto o seu protagonista, "Inimigos Públicos" mostra que Michael Mann sabe realizar bem mais que simples filmes de ação, acrescentando a eles uma profundidade ímpar. Mais do que uma mera versão de "Fogo Contra Fogo" nos anos 1930, o longa desponta como o primeiro blockbuster de 2009 a ser um candidato sério às grandes premiações. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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