Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Grandes Esperanças

A última adaptação para as telas do clássico livro de Charles Dickens é simplesmente maravilhosa. O cineasta Alfonso Cuarón conseguiu a proeza de transportar uma trama passada no século XIX para os dias de hoje, captando toda sua essência com um ótimo roteiro.

Finnegan Bell (Ethan Hawke, de “Gattaca – A Experiência Genética”) é um garoto simples que vive em meio à pobreza de uma cidade em decadência. Criado pela irmã mais velha e seu marido, Joe (Chris Cooper, de “O Despertar de um Homem”), ele percebe desde cedo o talento que possui para a pintura e a paixão avassaladora pela fria Estella (Gwyneth Paltrow, de “Shakespeare Apaixonado”), a quem aprende a amar desde criança. Porém, Estella foi educada por uma desiludida e vingativa tia, que a ensinou a jamais deixar envolver ou se apaixonar. Ao contrário de Finn, que sempre viveu o amor até seu limite e além, ela desenvolveu a frieza de mantê-lo afastado de si, apenas fazendo uso do sentimento que despertava nos homens para beneficiar a si mesma.

Alfonso Cuarón é o típico exemplo de um cineasta que chegou de mansinho e, definitivamente, para ficar. Seguro, talentoso e extremamente criativo, o diretor mexicano sabe o que faz e é um estudioso. Acho impressionante a maneira como ele sempre consegue surpreender, atuando como um verdadeiro ilusionista em seus bem desenhados planos, em seus perfeitos e estudados movimentos de câmera. A atmosfera que cria é essencial em cada um de seus projetos cinematográficos, por trabalhar de maneira tão sincera as mínimas sensações.

Há um pequeno plano-seqüência na película de tirar o fôlego, em um dos momentos mais marcantes do roteiro. É incrível como ele consegue pegar um texto que não é seu e conseguir deixá-lo com a sua cara, a sua marca – por sempre acrescentar detalhes tão característicos seus, como a brincadeira que faz com o avião de brinquedo, ao anunciar uma viagem; ou mesmo o uso do verde, que já tornou-se tão característico nos longas que dirige. Sem falar no elenco, do qual ele conseguiu extrair cenas tão verdadeiras.

Já ouvi muita gente criticar duramente o trabalho de Gwyneth Paltrow, mas acredito que aconteça principalmente pela difícil personalidade da atriz. Em “Grandes Esperanças” ela não desaponta, mesmo não surpreendendo. É precisa, cruel e tem aquele olhar frio – exatamente o que é esperado de alguém como ela, alguém que não se deixa afetar por coisa alguma. E por incrível que pareça, Hawke e ela convencem como o “quase” casal que representam. Na pele do frustrado e iludido jovem que traça sua vida inteira na esperança de um dia conquistar a mulher de seus sonhos, ele comove talvez pela sutileza, pela naturalidade de não tentar ser nada além daquilo que é: uma pessoa comum que tem seu coração partido constantemente, que não consegue enxergar a verdade que está o tempo todo na sua cara.

No elenco de apoio, estão ainda nomes de peso como Robert DeNiro (“O Poderoso Chefão II”), a excelente Anne Brancroft (“A Primeira Noite de um Homem”) e o talentoso Chris Cooper, que dão mais brilho a esta produção, e quase poderia ter passado despercebida, não fosse um trabalho de Cuarón, somado ao fato de ter uma ótima equipe.

O roteiro é assinado pelo pouco conhecido Mitch Glazer, realizador de filmes que quase ninguém nunca ouviu falar. Com intervalos de quase cinco anos entre cada um de seus roteiros, apesar de ter feito um bom trabalho aqui, é impossível não creditar a intensidade de sua trama à maneira Cuarón de conduzir o projeto. E é bem provável que esse vá ser o único longa realmente bem sucedido da vida de Glazer, que merece mérito pela atualização da história.

Logo que foi lançado, muito foi falado sobre a imensa diferença entre filme e livro. Acho que mesmo com todas as óbvias modificações, já que a obra foi trazida do século XIX para os dias de hoje, o filme conseguiu captar exatamente o sentimento trazido pelo livro: as mensagens, as sensações e até mesmo as frustrações. E a eterna dúvida: afinal, Estella chegou algum dia a sentir algo pelo apaixonado Finn?

Beatriz Diogo
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