Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 21 de março de 2009

Pagando Bem Que Mal Tem?

Simples e sentimental, “Pagando Bem, Que Mal Tem?” introduz à fórmula batida das comédias românticas uma boa dosa de sacanagem, em um filme hilário, mas que não esquece de lidar com os sentimentos de seus personagens.

Nenhum outro diretor no mundo conseguiria realizar este "Pagando Bem, Que Mal Tem?" se não Kevin Smith. Antes mesmo de Judd Apatow e sua trupe se aventurarem no ramo das comédias românticas escatológicas, Smith já estava quebrando fronteiras misturando filmes escrachados com sentimentos mais humanos em sua filmografia que inclui o belíssimo "Procura-se Amy" e os deliciosamente insanos "Barrados no Shopping" e "O Balconista".

No entanto, há uma boa compatibilidade entre os estilos dos dois cineastas que, inclusive, permitiu Smith usar neste seu novo filme um dos grandes nomes do elenco e de produção de Apatow, Seth Rogen, astro de "Ligeiramente Grávidos". Novamente, Rogen vive um sujeito despreocupado e com um grave caso de síndrome de Peter Pan. O ator vive Zack, um atendente de uma cafeteria que mora com sua amiga de infância Miri (Elizabeth Banks) há 10 anos. Um sabe os segredos e idiossincrasias do outro, suas fraquezas, sentimentos e histórias cabeludas, em uma amizade de duas décadas que nunca se consumou em sexo.

Vivendo atolados em dívidas – e gastando suas economias em brinquedos sexuais para compensar a coisa real -, ambos estão perto da bancarrota, sem dinheiro para as contas de luz, telefone, água, aluguel… Devido a uma embaraçosa situação durante a festa de reunião de 10 anos do colegial da turma dos dois, uma ideia um tanto inusitada veio à cabeça de Zack para sair da pindaíba: ele e Miri vão estrelar um filme pornô. Reunindo um grupo bizarro, mas unido, para o elenco e equipe, os dois amigos terão de lidar com a pressão de finalmente se verem em uma situação de maior intimidade e lidar com as consequências que isso trará para a relação dos dois.

Em se tratando de filmes de Kevin Smith, duas coisas são extremamente importantes: os diálogos e a interação entre os atores. Como roteirista, o cineasta continua afiado como nunca, sabendo incluir sequências das mais estranhas, sem jamais esquecer de desenvolver seus protagonistas, principalmente em relação ao conflito principal dos dois, que é a transição de um relacionamento platônico tão longo para um físico, ainda que seja com fins monetários.

É uma situação – fora a parte do pornô – com a qual boa parte do público pode se relacionar, criando um vínculo imediato entre o público e os personagens, enquanto a audiência se acaba de rir com as loucuras do texto de Smith e com a rápida troca de falas entre aquelas figuras, que caminham entre pessoas comuns – como Zack e Miri – e outras absolutamente bizarras como Lester (Jason Mewes) e Barry (Ricky Mabe).

Smith é, reconhecidamente, um ótimo condutor de atores. Trabalhando com um elenco extremamente cômico e em sintonia, que mistura figuras carimbadas de seus filmes com outros que trabalham com ele pela primeira vez, além de algumas atrizes vindas diretamente do cinema erótico, o diretor extrai uma química fenomenal, não só entre seus dois protagonistas, mas entre todos os atores do cast. Seth Rogen e Elizabeth Banks já trabalharam juntos em um longa em situações sexuais, na antológica cena do clímax de "O Virgem de 40 Anos", já possuindo um relacionamento não igual, mas análogo ao de seus personagens, algo que favorece bastante a interação dos dois em cena.

Rogen encarna com desenvoltura um alter-ego para o próprio Kevin Smith na tela – a produção meio mambembe chega a lembrar a que o cineasta reuniu para "O Balconista". Seu jeito de menino grande e barbado lembra mesmo o do cineasta e o ator possui timing cômico e carisma únicos e arranca várias gargalhadas do público, tendo como destaque seu diálogo com o personagem de Justin Long. Banks, por sua vez, não deixa a peteca cair nos ótimos diálogos com seu parceiro de cena, não ficando para trás nem mesmo nas cenas mais embaraçosas.

Já no elenco coadjuvante, dois atores velhos conhecidos dos fãs de Smith dão as caras. O primeiro é Jason Mewes, o eterno Jay, encarnando o ator pornô iniciante Lester. Mewes não é lá o ator mais versátil do mundo, com seu personagem não sendo muito mais do que um Jay de cabelo curto, mas não há como negar que, mesmo com ele encarnando a mesma figura de novo e de novo, ele é engraçado. A outra figurinha carimbada é Jeff Anderson, mais conhecido como o irônico balconista Randal. Aqui ele vive o cameraman do longa erótico de Zack, Deacon. Ele se sai bem, apesar de não ter lá muito tempo de tela, além de participar da cena mais escatológica do filme, dando outro significado para a palavra "cobertura".

Dando uma maior "credibilidade pornográfica" à fita, estão as atrizes pornô Traci Lords e Katie Morgan, que vivem… bem, atrizes pornôs. Lords, já acostumada há tempo às produções mainstream, não compromete. Por outro lado, Morgan não é lá uma nova Meryl Streep, não tendo muito potencial cômico e sendo dona de uma voz um tanto quanto irritante – algo não atrapalha a sua carreira principal -, sendo o ponto fraco do elenco, embora seja a que mais aparece pelada. Também fazendo o seu primeiro filme com Smith está o desconhecido ator canadense Ricky Mabe, fazendo o estranho, mas apagado Barry.

O cast possui um grande trunfo e este se chama Craig Robinson. O comediante, mais conhecido pelo seu papel como Darryl na genial série de TV "The Office", rouba todas as cenas em que participa, vivendo Delaney, o casado e semi-feliz colega de trabalho de Zack, além de produtor do filme deste. Todas as referências que o personagem solta sobre o seu casamento na película são absolutamente hilárias. Além disso, o próprio tom de voz meio derrotado do ator cai como uma luva para o sofrido homem. No entanto, é interessante notar que é ele o responsável pela epifania do protagonista no último ato da película, algo típico dos longas de Smith e que geralmente era feito pelo personagem do diretor nos filmes, Silent Bob.

Assim como Zack, Kevin Smith conta com uma equipe de produção bastante unida, trabalhando feito um relógio com seus velhos colaboradores, o diretor de fotografia David Klein (ambos iniciaram suas carreiras com "O Balconista" em 1993) e o compositor James L. Venable. Não é o tipo de filme no qual as características técnicas são a parte principal, mas nem por isso são descuidadas na produção. Novamente editando seu próprio filme, o cineasta soube como dar ritmo à produção, dosando muito bem piadas sujas, referências nerdicas e discussões de relacionamentos na produção, jamais deixando o público passar muito tempo sem dar uma bela risada.

"Pagando Bem, Que Mal Tem?" não é uma fita complexa e nem vai revolucionar o mundo da comédia. É uma história básica de dois amigos que se descobrem perfeitos um para o outro, mas com pornografia no miolo da história. Seguindo bem a fórmula de apresentação-aproximação-separação-reconciliação da cartilha das comédias românticas, o longa se distancia do padrão dessas fitas ao incluir uma boa dose de sacanagem e escatologia na receita, mas sem se esquecer dos sentimentos de seus personagens. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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