Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 01 de setembro de 2007

Cidade dos Homens – O Filme

Depois de quatro temporadas na TV, chega a vez de “Cidade dos Homens” virar filme. E que filme! Nele, Acerola e Laranjinha fazem uma nova jornada, dessa vez, envolvendo paternidade e, acima de tudo, responsabilidades.

Foram suficientes quatro temporadas para, modestamente, transformar “Cidade dos Homens” em uma boa série brasileira, muito melhor do que “Antonias” da vida. A idéia da série surgiu em 2000, dois anos antes do conhecido frenesi perante o sucesso de Fernando Meirelles com o filme “Cidade de Deus”. Foi após a exibição em um especial de fim de ano na TV Globo, chamado “Palace II”, baseado no livro “Cidade de Deus” de Paulo Lins, com direção também de Meirelles, que viram no assunto um bom futuro. Não é à toa que em 2002, Meirelles concebeu uma obra-prima do cinema brasileiro, aclamado mundialmente. Dizem que o seriado, e agora longa-metragem, “Cidade dos Homens” é apêndice dessa obra-prima, quando, na verdade, é mais do livro.

Não tinha como “Cidade dos Homens” não fazer sucesso na televisão. O elenco de “Cidade de Deus” fora quase que completamente remanejado e, como maior trunfo, Fernando Meirelles acompanhou o seriado global de muito perto. Os atores Darlan Cunha e Douglas Silva foram tratados euforicamente como revelações, afinal protagonizaram difíceis momentos para meninos ainda imaturos – sobretudo Douglas (o Acerola), que fora indicado a alguns prêmios mundiais, inclusive ao de melhor ator pelo International Emmy.

No cinema também não poderia ser diferente. O filme vem colado com os acontecimentos finais da última temporada (a quarta) do seriado. Acerola (Douglas) e Laranjinha (Darlan) continuam amigos inseparáveis, mas agora têm de conviver com dois problemas: a chegada da maior idade e a busca por um pai. Enquanto Acerola busca ser um bom pai, Laranjinha busca o seu pai. A história acaba se entrelaçando com a guerra existente no morro e entre os morros, o que enriquece essa produção para além do drama. Torna-se uma aventura, que nem chega perto da ficção. Infelizmente, tudo que fora mostrado na trama dessa adaptação é bastante real.

Logo de início, somos apresentados a um importantíssimo personagem: Madrugadão (Jonathan Haagensen, de “Cidade de Deus”). De que forma? Melhor impossível. Em cima do morro, onde os traficantes têm uma visão completa da sua cidadela, o personagem resolve se libertar um pouco do sol e da morbidade; é quando o chefe resolve tomar banho de mar. O simples banho de mar para pessoas comuns é completamente diferente para o grupo de Madrugadão. Descendo o morro, atraindo a atenção dos moradores – alguns o seguem e aproveitam a proteção -, Madrugadão chega com sua trupe na praia e lá organiza um esquema que faria qualquer ação tática militar ficar estarrecida. Não é um simples banho de mar. É a amostra do poder e do senso militar que esses traficantes têm. Algumas críticas dadas a “Cidade de Deus” recaíram sobre o fato desse filme não mostrar a atuação desses traficantes na cidade em si e, de cara, “Cidade dos Homens” corrige esse possível defeito do seu filme-padrinho.

Os personagens não foram apresentados – não é preciso, é fato -, e isso pode parecer um pecado para aqueles olhos que não degustaram nenhuma das temporadas do seriado, sobretudo a última. É preciso calma ao espectador, caso seja esta a primeira vez a se deparar com Acerola, Laranjinha, o menino Cleiton e etc. Aos poucos, porém, momentos chaves do seriado vão sendo atribuídos à trama como flashback, e a pessoa passa, ainda que não completamente, a entrar naquela atmosfera. Uma hora de projeção foi mais do que suficiente para olhares leigos se acostumarem com a história, personagens e com a linguagem de “Cidade dos Homens”.

Nunca o título fez tanto sentido. Para aqueles que acompanhavam os personagens moleques nas temporadas iniciais, o título não soava da forma mais correta. “Cidade dos homens? Mas que homens?” Agora sim, homens de fato. Acerola e Laranjinha completaram 18 anos. A maturidade de vida já adquirida até antes da maturidade oficial agora terá que perpassar pela maturidade de cuidar de outra vida. Acerola, um personagem sempre simpático, vivido primorosamente bem por Douglas, se vê na responsabilidade de cuidar de uma casa, um casamento, uma amizade e um filho. Acostumado com a infância e adolescência, acaba até colocando a amizade em primeiro lugar. Em vez de prestar atenção em Cleiton, seu filho, ele busca freneticamente o pai de Laranjinha. Todavia, como sempre, uma hora a ficha cai. Ele tem que deixar certos costumes de lado e aderir à condição de pai, e assim faz, mesmo que demoradamente.

Pela primeira vez, até como o próprio trailer especula, os personagens foram colocados como adversários. Passageiro ou não, tal momento foi plenamente válido. Foi aquele o último passo que eles precisavam para consolidar uma grande amizade em irmandade. Foi naquele momento que, de fato, viraram homens. Não homens de uma cidade (no caso o morro), mas o estilo de homem que uma sociedade coerente almeja ter como cidadão.

A direção ajuda e muito para o sucesso do longa. Paulo Morelli brinca com câmeras livres e planos longos. Além disso, tomadas de helicóptero apresentaram muito bem a arquitetura de todos os morros utilizados no roteiro de Elena Soarez e também de Morelli. Ainda na equipe técnica, com certeza assessorando o diretor, roteirista e também produtor, esteve Fernando Meirelles (produção). Realmente não conhecia o trabalho de Morelli até pesquisar e ver que ele dirigiu vários episódios do seriado. Dentre eles, um que julgo o melhor da quarta temporada, “Tá sobrando Mês”, o qual ele dirigiu e roteirizou junto com George Moura e seu irmão Pedro Morelli.

É fato que existem erros no filme, como a edição e montagem. Quando você vinha se empolgando em uma cena, essa era cortada para outro núcleo. Até aí tudo bem, afinal, não era só uma história vingando na trama, mas a forma brusca com que essas cenas eram transpassadas atrapalhou um pouco o olhar do espectador. A impressão deixada foi a de que muitas horas de filmagem importantes tiveram que ser condensadas em 110 minutos de projeção.

Voltando à trama, um paralelismo é interessante ser observado. Como pano de fundo do drama, vem a aventura/ação do conglomerado de morros e as respectivas lutas por poder dos traficantes Madrugadão e Nefasto (Eduardo BR). Enquanto víamos os traficantes se aliando para conquistar ou reconquistar seu espaço, víamos também dois personagens buscando companheirismo para conquistar o direito de viverem bem, para conquistarem seus sonhos. Fica, dessa forma, um questionamento plantado. O que foi melhor: ter ao seu lado um amigo para todas as horas ou um aliado que te muni com armas dos mais variados calibres? Vai de cada um. É assim na favela. Existem, por mais que difícil de perceber, dois caminhos: matar ou não matar, que reflete em viver ou não viver – nessas frases o “ou” faz todo o sentido. Acerola e Laranjinha escolheram viver, ainda que para isso um precise ser pai e o outro precise viver sem pai. Acima de tudo, eles vivem, eles dão vida, não as tiram. São amigos, companheiros, irmãos… não são aliados.

Raphael PH Santos
@phsantos

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