Cinema com Rapadura

Críticas   quinta-feira, 23 de março de 2017

T2: Trainspotting (2017): por que não são feitos mais filmes como esse?

O fundamento da obra é a memória afetiva, pois o filme é uma dose alta de nostalgia em relação ao primeiro, de 1996. Com menos escatologia e um roteiro mais rebuscado, a qualidade técnica de Danny Boyle na direção faz desse episódio um entretenimento inestimável.

Simon tem razão: Mark “é um turista na sua própria juventude”. O passado não raras vezes é enxergado como melhor que o presente, o que justifica a vontade das pessoas em reviver tempos pretéritos. No caso de “T2: Trainspotting”, revisitar “Trainspotting – Sem Limites” é uma sensação de saudosismo sem igual.

O argumento consiste na reunião do grupo principal: Renton (Ewan McGregor, de “O Impossível”) é o único que mudou de vida, agora um homem de sucesso, saudável e pai de família; Spud (Ewen Bremner, de “Expresso do Amanhã”) continua viciado em heroína, decepcionando a si mesmo por não ser quem a mulher e o filho merecem, apesar de ter um trabalho sério em construção civil; Sick Boy (Jonny Lee Miller, da série “Elementary”) é dono de um pequeno pub, ao mesmo tempo em que continua viciado (agora em cocaína), cafetão e também chantagista; e Begbie (Robert Carlyle, de “A Lenda de Barney Thomson”) é o mesmo sujeito agressivo, ainda que preso. Com o tempo, Renton confessa que sua vida não é como havia apresentado, quando então eles voltam a cometer crimes.

Tendo o mesmo elenco, o mesmo diretor e o mesmo autor da obra original (Irvine Welsh), não poderia dar errado, certo? Em tese, sim. É grande o apelo para a memória afetiva, tanto no roteiro quanto na direção. O filme segue a mesma estrutura do anterior, apresentando cada um deles (inclusive simulando sua infância), com bastante metalinguagem e referências a eventos do antecessor. Até mesmo o prólogo é uma nova roupagem do longa de 1996, com Renton correndo, mas agora numa esteira, ao som de um pop-rock bem agitando – deixando aparecer sua tatuagem de bicicleta, indicativo da sua vida saudável.

No mesmo sentido, o protagonista revisita seu icônico quarto e encontra uma privada asquerosa. Há também um momento “choose life”, em que ele explica para outra personagem – sobre esta, basta dizer que é fundamental e que não será aprofundada para evitar spoilers – o que o monólogo significa, logo em seguida atualizando-o para elementos contemporâneos. É empolgante ouvir aquilo de novo, embora a montagem seja menos dinâmica dessa vez. A sensação de déjà vu também é motivada por Spud em diversas passagens, principalmente quando há um falso flashback em que ele se recorda da corrida do prólogo do primeiro filme. Entretanto, não é só de memória afetiva que “T2” vive. O longa é menos escatológico que o anterior (exceto por uma cena) e tem um roteiro mais rebuscado. Deixa de ser um filme de eventos para se tornar um filme de personagens. Não que seja monótono, mas há maior aprofundamento em relação ao quarteto.

Begbie continua explosivo e agressivo, porém, a atuação de Carlyle é mais comedida, pois agora Frank (como passa a ser conhecido) é um pai de família que precisa lidar com a esposa e o filho (algo mais real que o mero psicopata). Seu arco dramático é riquíssimo, referente à paternidade e a constante vontade dos pais de decidir o futuro dos filhos. Spud também apresenta uma nova camada, passando a mensagem segundo a qual todas as pessoas têm um talento a ser desenvolvido. Por outro lado, Sick Boy (agora Simon) e mesmo Renton (agora Mark) deixam a desejar. O primeiro pouco evoluiu desde 1996, ainda apostando em lucro fácil. Simon aproxima-se da posição de vilão, mas o roteiro é subversivo demais para fazer de um amigo um inimigo (apesar do desfecho do anterior). Mark move a trama mais pelo que fez no passado do que pelo que faz agora. Na atuação, todavia, todos vão muito bem.

Danny Boyle continua ótimo, encontrando um desafio hercúleo com a fita. Em 1996, era mais fácil ser ousado e chocar o público, em razão da escassez de acesso à informação, comparativamente a 2017. Agora, mostrar nudez frontal e cenas de sexo é quase banal – “Ninfomaníaca” e “Love” são prova. A internet também colabora bastante nesse sentido. A linda fotografia (tanto diurna quanto noturna) em Edimburgo também não encanta o suficiente. Atualizar as cenas com smartphones e filtros de aplicativos de fotos e vídeos é fazer o básico. Sabendo disso, Boyle aposta em dar espaço ao roteiro e esmerar-se na técnica. Assim, o diretor usa o plano holandês em várias cenas (técnica comum para sugerir instabilidade), coloca uma câmera em um microfone (aproximando o espectador da encenação) e divide a tela em uma cena com Frank e Mark em um banheiro (a tela dividida é artifício constantemente usado no gênero romance).

Boyle também faz um inusitado trabalho de iluminação: quando Mark conversa com seu pai, sua sombra, à direita, insinua a presença de um terceiro; e quando Spud fica sentado no fundo do cenário, cresce uma sombra sua, indicando trabalho, como se sua vida fosse reduzida a introspecção e labor. Mais uma vez, a veia cômica é forte, como quando Simon toca piano e Mark cria uma música para cantar no improviso. Ainda, são mais claras as referências a clássicos como “Touro Indomável” e “O Iluminado”. Evidentemente, a maravilhosa trilha sonora é atração à parte, começando com “Garota de Ipanema” (instrumental), passando por “Radio Ga Ga”, “Relax” (da banda Frankie Goes to Hollywood) e “Dreaming” (dos roqueiros da Blondie).

T2: Trainspotting” aposta bastante na nostalgia e depende muito do primeiro episódio, de 1996 (ou seja, melhor assistir a ele antes). Não tem a mesma subversão nem a inovação de “Trainspotting – Sem Limites”, mas tem o mesmo DNA e o mesmo nível de qualidade técnica. Quem gostou do anterior tem em “T2” um deleite. O cinema estaria bem melhor com mais filmes como esse.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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