Cinema com Rapadura

Críticas   terça-feira, 14 de março de 2017

Negação (2016): o Holocausto existiu mesmo?

O filme é de uma espécie rara que une tribunal, fatos históricos sobre o nazismo, atuações grandiosas e subtexto bastante contemporâneo. Requintado, o roteiro de alto nível vale por si só.

Ele expõe seus argumentos na televisão. Ela dá uma aula resumindo os argumentos dele. Está aí o prólogo de “Negação”, que faz um interessante questionamento histórico: o Holocausto existiu mesmo? A resposta fácil é “sim, obviamente”. Porém, o filme vai além: quais são as provas?

A trama é um verdadeiro embate entre Deborah Lipstadt (Rachel Weisz, de “O Lagosta”) e David Irving (Timothy Spall, o Pedro Pettigrew da franquia “Harry Potter”): ele sustenta que o Holocausto é uma fraude histórica, criação dos judeus para obterem benefícios; ela, historiadora renomada, acha seu discurso estapafúrdio até o momento em que ele a processa por difamação. O processo de um possível crime contra a honra recebe então contornos mais amplos para tentar provar a existência da figura histórica.

O processo tem início na Inglaterra – aliás, o plot é embasado em uma história real – cujo modelo jurídico é repleto de idiossincrasias. Ônus da prova (que lá cabe ao réu), diferença entre solicitor (advogado que faz o serviço de bastidores) e barrister (advogado responsável pela sustentação oral) e assim por diante: são incontáveis as especificidades da jurisdição britânica, e o filme tem a preocupação de explicá-las minimamente (cabe lembrar que isso não é fácil sequer para tem formação jurídica, tamanha a diferenciação sistêmica). Para o público com formação jurídica, essa parte é um prazer a mais.

O formidável quarteto principal tem em Andrew Scott (de “007 Contra Spectre”) o Calcanhar de Aquiles, em razão de uma personagem vivida de forma insossa. Diametralmente oposta está a talentosíssima Rachel Weisz, verdadeira pérola hollywoodiana subaproveitada. Sua habilidade notória em diferenciar personagens é fascinante, bem como a intensidade com que ela interpreta cada um deles (e aqui não é diferente). Tom Wilkinson (de “Snowden – Herói ou Traidor”) já tem a carreira consolidada, fazendo do barrister de Lipstadt uma personagem com camadas sensíveis. A oratória que Wilkinson imprime em Richard Rampton é tão empolgante que a vontade do espectador é bater palmas ao fim de cada solilóquio (com trechos reais!). Também digna de nota é a de Timothy Spall, o vilão tão inteligente quanto desprezível. Spall pode dar a entender um overacting no papel, contudo, o próprio Irving é caricaturesco – e ainda mais preconceituoso quando parece. Seu discurso destila ódio e discriminação.

É onde entra o cerne da trama: existe limite para a liberdade de expressar uma opinião? Em caso afirmativo, como pode ser definido? O texto infelizmente dá uma solução simplista, todavia, em tempos em que a liberdade de expressão é encarada por alguns como um cheque em branco, o debate é de pertinência ímpar. E mais: o debate (no caso, sobre a existência do Holocausto) é obrigatório? Lipstadt seria antidemocrática ao recusar-se a debater com Irving? Através de uma piada sagaz, ela fundamenta a recusa… mas não consegue fugir do enfrentamento. Ela é inteligente, mas teimosa, inclusive (e principalmente) em relação aos advogados – sem contar emotiva, a ponto de querer derreter a estratégia da defesa.

A direção coube ao pouco expressivo Mick Jackson, que tem em “Negação”, provavelmente, o cume da carreira. Seu grande mérito é a sutileza em mensagens pontuais: Rampton é um workaholic que encontra no álcool o escapismo que precisa; Irving tem uma empregada, evidentemente, negra de avental (e o que ele fala sobre empregadas é asqueroso); a impactante cena em Auschwitz tem um plano específico mostrando pingos de água caindo da cerca, metáfora clara que se refere à tristeza que repousa no local.

Entretanto, o longa tem defeitos. Há um diálogo entre Lipstadt e Rampton que quebra o ritmo da película, ainda que seja necessária. A montagem elíptica é facilitada pela indicação expressa das datas, mas dificultada pelos takes que podiam ser um pouco mais longos. Os discursos deixam uma sensação de reducionismo, de sorte que a exposição dos argumentos merecia mais tempo. Por fim, falta emoção, presente apenas em doses tópicas.

Mesmo com os equívocos mencionados, “Negação” é um dos melhores filmes da sua espécie nos últimos anos. Uma espécie rara que une um tribunal, fatos históricos sobre o nazismo (momento histórico que ainda não foi exaurido), atuações grandiosas e subtexto bastante contemporâneo. Porque hoje a liberdade de expressão é uma faca de dois gumes e que só cumpre sua função se quem a utiliza tem habilidade para tanto.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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