Cinema com Rapadura

Críticas   sexta-feira, 03 de março de 2017

Loving (2016): lição ainda não aprendida

Baseado em fatos reais, o argumento é fenomenal e – para a tristeza da humanidade – de exposição socialmente necessária. Apesar do ótimo elenco, como filme, a obra não alcança seu potencial.

O público costuma gostar de histórias baseadas em fatos reais, mais ainda quando existe a famosa “moral da história”. Para esse perfil de espectador, “Loving” é um deleite. Contudo, lembrar que o conflito da época dos fatos ainda existe (mesmo que com outros moldes) pode ser desanimador.

O filme, baseado em fatos reais, gira em torno do casal interracial Richard (Joel Edgerton) e Mildred (Ruth Negga), presos em 1958 por terem se casado em Washington, e que posteriormente enfrentam as instituições para buscar o direito à felicidade enquanto casal. À época, nos EUA, vigoravam em muitos estados legislações que vedavam a miscigenação e criminalizavam os relacionamentos interraciais – era o caso da Virgínia, onde moravam.

Para pessoas esclarecidas e com senso de humanidade, mencionar a relevância da temática em pleno 2017 seria dissertar sobre uma obviedade. Entretanto, a história (em seu sentido estrito) mostra que a sociedade pouco evoluiu, pois, em mais de cinquenta anos, a discriminação persiste – ainda que de maneira velada, o que também é deveras cruel. O século XX ainda não ficou para trás: o fundamento para impedir certos relacionamentos era essencialmente o religioso; qualquer semelhança com discursos atuais não é mera coincidência. Nesse raciocínio, “Loving” é socialmente necessário. Todavia, do ponto de vista cinematográfico, a obra se revela aquém do seu embasamento real.

Não obstante, a escolha do casal principal não podia ser mais acertada: individualmente eles vão muito bem; juntos também convencem, tornando palpável a emoção do desfecho. Ruth Negga interpreta com delicadeza o papel de Mildred, dominando o crescimento da personagem no decorrer da trama. Porém, o minimalismo do trabalho o torna esquecível, ainda mais pela inexistência de ao menos uma cena dramaticamente pujante. Joel Edgerton encarna Richard com destreza inédita – provavelmente, a melhor atuação da sua carreira –, reforçado pela caracterização enfática (cabelos bem curtos e loiros, destacando sua pele branca). Edgerton se encolhe (literalmente) quando Richard divide a cena com alguma autoridade, transmitindo timidez e desconforto ao não olhar o outro diretamente nos olhos, abaixando a cabeça e fazendo uma expressão de desconfiança. Já na companhia de Mildred, a dureza da sua expressão corporal se derrete, prova disso é quando ele se deita no sofá, encostando a cabeça no colo dela e rindo com ela sobre algo visto na televisão. Aliás, essa cena é uma reprodução real que enseja a participação do sempre excelente Michael Shannon (de “Animais Noturnos”) – aqui, elétrico e verborrágico num papel pequeno o suficiente para não roubar a cena, mas grande o suficiente para ser reconhecido. Marton Csokas pode parecer repetir um vilão (aquele de “O Protetor”), todavia, a arrogância com que chama Richard de “garoto” aponta que o Xerife tem sim suas particularidades. Talvez merecesse maior espaço.

Se o Xerife é o vilão, antagonista é o sistema, que impede a felicidade plena de Mildred e Richard. O roteiro deixa bastante claro que esse é o núcleo, no entanto, é completamente incapaz de conceder maior complexidade ao texto, tornando-se raso. A mãe de Richard tem ressalvas quanto à opção afetiva do filho, transparecendo frieza e indiferença sem externar verbalmente o que pensa, salvo por alguns segundos, insuficientes. Os advogados do casal ora soam aventureiros sem experiência, ora oportunistas pouco preocupados com os clientes enquanto pessoas – na prática, não foram aliados dos heróis? O elenco não tem poucos atores, porém, nenhum coadjuvante tem um arco dramático pessoal. Até mesmo o relacionamento interpessoal do casal é simplista, quase insosso. Apenas a exposição e a influência da mídia recebe maior atenção, pouco para um enredo tão rico.

Ao roteiro de Jeff Nichols falta engenhosidade, simplificando demais o plot. O início do filme se revela apressado, surpreendentemente em estágio avançado do relacionamento, deixando claro que o principal está por vir. A consequência é ruim, pois não mostrar a fase embrionária do romance dificulta a identificação cinematográfica secundária, de sorte que o espectador não se afeiçoa suficientemente ao casal, torcendo pela causa por força de sua nobreza, não por simpatizar com Richard e Mildred (poderia ser outro casal qualquer). O impacto ocorre na direção, que também é de Nichols, que não consegue dar um ritmo empolgante à narrativa. O diretor pouco aparece, o trabalho é minimalista, quase preguiçoso, apostando demais no argumento.

Felizmente, o argumento é fenomenal porque o casal Loving – sim, o sobrenome era real e não uma mera licença poética – merece ser festejado por sua contribuição histórica para a sociedade. Seu amor foi uma força cuja potência abalou estruturas, no entanto, a lição que ensinaram ainda não foi aprendida.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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