Cinema com Rapadura

Críticas   terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Um Homem Chamado Ove (2015): coração leviano

Preenchido por um surpreendente sentimentalismo nostálgico e colorido por um azul delicado do frio sueco, esse comédia resulta numa saborosa quebra da cinematografia nórdica

O mau-humor sempre foi, contraditoriamente, combustível de boas comédias. Parece haver algo de hilariante para as plateias em ver reações fechadas e desproporcionais de personagens sisudos, grosseiros e enfezados, vide “Dois Velhos Rabugentos” (1993) ou “Melhor é Impossível” (1997). Quando interpretado por bons artistas e conduzido por um bom texto, o resultado geralmente é delicioso, exatamente como se dá em “Um Homem Chamado Ove”, produção sueca indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Ove (Rolf Lassgard, “Depois do Casamento“) é um taciturno senhor de 59 anos cujo temperamento mistura altas doses de rabugice, pitadas de Transtorno Obsessivo Compulsivo e um metódico zelo pelas regras de segurança de seu bairro. Amargamente solitário depois da morte da esposa (cujo túmulo visita regularmente e tece longas conversas) e sem muito o que fazer depois de ser dispensado da fábrica em que trabalhara por mais de quarenta anos, seu único objetivo na vida é o suicídio. Porém, a empreitada é sempre sorrateiramente atrapalhada pelas intromissões de seus novos vizinhos, um casal multiétnico e cheio de filhas que representa tudo que Ove mais detesta no mundo atual. Para sua surpresa, é através dessa família que ele redescobre alguns valores da vida e passa por experiências marcantes, num momento em que nenhuma nova perspectiva lhe parecia ainda reservada.

A adaptação para o cinema é assinada pelo diretor Hannes Holm (“Família Andersson na Grécia“), a partir do best-seller mundial de Fredrik Backman. Lançado originalmente na Suécia em 2012, o livro tornou-se um sucesso de vendas e recebeu tradução para diversos idiomas, incluindo o português. O motivo é facilmente compreensível: a história agridoce é conduzida com habilidade em altercar o presente e o passado, contando as desventuras da vida de Ove e os motivos que o levaram a tornar-se esse tipo de pessoa. As viradas narrativas são previsíveis, clássicas e às vezes até mesmo clichês, mas também de fácil empatia, agradáveis ao público mais amplo e condizentes com a mensagem positiva que a obra parece desejar transmitir.

Mais do que isso, a narrativa é recheada de passagens saborosas, tanto engraçadas, focadas no mau-humor do protagonista e seu repúdio pelos hábitos modernos, quanto românticas ou dramáticas, que retornam ao jovem Ove (Filip Berg, de “Evil – Raízes do Mal”) e seu relacionamento com Sonja (a solar Ida Engvoll, da série “The Team”). Um ponto de destaque é o trabalho de maquiagem realizado pelo dupla Love Larson e Eva Von Bahr, que ano passado já havia conquistado uma indicação ao Oscar pelo trabalho em “O Centenário que Fugiu pela Janela e Desapareceu” e esse ano repete o feito pelo trabalho de completa transformação em Lassgard. Também os novos vizinhos de Ove, liderados pela esperta Pavaneh (a ótima Bahar Pars), oferecem a esteira por onde o protagonista traça sua jornada de redescoberta. Vale destacar a escolha de uma atriz iraniana para o papel da personagens que, como o motor do Saab de Ove, é a força motriz de sua jornada, em consonância com a conjuntura europeia de crise dos refugiados. A interação poética entre esses dois personagens parece ser uma declaração de seus realizados em favor da convivência pacífica entre os diferentes povos, erguendo-se contra os muros e a xenofobia que têm invadido, por medo, as culturas europeia e norte-americana.

Além disso, a estética colorida e o clima iluminado que o diretor decidiu imprimir em seu filme representam uma quebra com os estereótipos que geralmente temos dos países nórdicos. Desde Ingmar Bergman (1918-2007) associados a um cinema pesado, densamente reflexivo e filosófico, a comédia de Holm é um sopro de vitalidade à visão sobre o cinema produzido naquela região e apresenta novas possibilidades àqueles realizadores.

O prazer de ver-se enganado sobre quem realmente é Ove, que têm suas nuances e complexidades reveladas paulatinamente pelo roteiro, também é didático em nos ensinar a não julgar as pessoas pela primeira impressão, a despeito do que diz a expressão popular. Daqueles filmes agradáveis, ideais para quando bater aquela bad, o filme sueco aproxima-se de seu concorrente alemão na disputa pelo Oscar “Toni Enderman”. Ambos partem de seus protagonistas maduros para nos apresentar mensagens positivas e esperançosas diante de tempos apáticos e soturnos. Mais ainda, também se conectam aos debates atuais, retratam os dramas de idosos num continente onde esse segmento cresce vertiginosamente. Assim, com um pendor à nostalgia, cheia de surpresas e ensinamentos leves e preenchidas pelo azul da paleta de Holm, “… Ove” é um feito em transformar a história desse homem comum numa fábula com dimensões mágicas e universais.

Vinícius Volcof
@volcof

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