Cinema com Rapadura

Críticas   domingo, 02 de junho de 2013

A Criada (2009): o cinema digital em boas mãos

Longa chileno indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme em Língua Estrangeira em 2009 se ancora no vínculo entre público e personagem para construir uma narrativa íntima e naturalista.

20532458.jpg-r_640_600-b_1_D6D6D6-f_jpg-q_x-xxyxxO cinema independente contemporâneo tem se desprendido da ambição de alcançar a textura clássica de película, assumindo cada vez mais uma linguagem própria e moderna por meio da estética digital. Ao contrário dos enlatados hollywoodianos que veem nesta opção apenas uma oportunidade de lucrar muito gastando pouco, esta vertente se preocupa em experimentar as possibilidades técnicas e linguísticas que o vídeo permite.

O cineasta chileno Sebastián Silva se utiliza dessa textura para compor uma estética quase documental em seu segundo longa, “A Criada”, permitindo assim uma aproximação íntima entre o público e a personagem principal. Raquel (Catalina Saavedra) é uma empregada doméstica que há mais de 20 anos trabalha para a mesma família. Percebendo a sobrecarga de trabalho da profissional, a dona da casa Pilar (Claudia Celedón) decide contratar outra pessoa para ajudá-la nas tarefas diárias. Porém, esta nova dinâmica de relacionamento não será fácil para a família e muito menos para a empregada.

Apesar de ser tratada como um membro da família, Raquel demonstra uma postura de deslocamento – tanto físico quanto afetivo – em relação às pessoas com quem trabalha. Com exceção das crianças, principalmente o jovem Lucas (Augstín Silva), que a diverte com suas brincadeiras, a empregada não demonstra ter um vínculo pessoal muito grande para com os outros membros da família, embora queira continuar trabalhando para eles a todo custo. Percebemos que Raquel é uma mulher solitária e a ideia de uma segunda empregada na família soa como uma ameaça a seu valor conquistado durante décadas.

O filme se desenvolve praticamente todo dentro da casa, contendo cenas externas apenas nas raras vezes em que a protagonista vai para a rua. Isto evidencia a abordagem intimista da história, o que nos torna cúmplices do drama da personagem título à medida que seguimos seus passos, fortalecendo nossa empatia por ela, mesmo que às vezes discordemos de suas ações.

Tais relações de cumplicidade com o público e distanciamento psicoafetivo da protagonista para com os demais são enfatizadas logo na primeira cena, que provavelmente é uma das mais determinantes do longa. Em meio a sons de talheres e conversas banais vindos da sala de jantar, Raquel come sozinha na cozinha e olha em direção à câmera – como se percebendo a presença do espectador – enquanto o título da obra é impresso na tela.

O roteiro de Silva e Pedro Peirano constrói a personagem e desenvolve a narrativa pacientemente, valorizando cenas que mostram a rotina da empregada e a dinâmica familiar. Os diálogos e as situações cotidianas facilitam a identificação do público e reforçam o caráter naturalista do longa. O tom levemente cômico soa autêntico e é muito bem-vindo, pois sem ele o andamento da história poderia ser maçante, principalmente durante o primeiro ato.

Danielle Fillios faz questão de acompanhar o andamento completo das ações em sua montagem, possibilitando uma familiarização maior do espectador com o ambiente e os personagens por meio de um ritmo tranquilo, quase em tempo real. Dessa forma, as elipses são apenas subentendidas, sendo imperceptíveis no desenrolar da trama.

A fotografia de Sergio Armstrong caminha no mesmo tom naturalista do roteiro, com a câmera na mão que registra os momentos de modo tão integrado à narrativa que parece ser manipulada por um personagem do próprio filme. Aproveitando-se muito de iluminação natural, Armstrong compõe uma imagem dessaturada e realista que vai ao encontro da textura digital empregada. Ainda assim, ocorre uma saturação das cores que traduzem os sentimentos de Raquel em um momento específico da história, revelando a preocupação do diretor de fotografia para além da técnica.

Já tendo trabalhado com o diretor em seu primeiro longa, “La Vida Me Mata”, Saavedra entrega uma atuação majestosa, utilizando-se de uma linguagem corporal carrancuda que revela muito sobre o comportamento antiassertivo da personagem ao mesmo tempo em que compensa suas poucas falas – uma escolha acertada do roteiro. Este trabalho rendeu nada menos que merecidos 12 prêmios para a atriz, além de outras duas indicações.

Ironicamente, a única grande falha do filme vem justamente do roteiro, que apresenta de forma inusitada um novo elemento que remete à personalidade de Raquel e soa estranho em relação ao que já conhecemos sobre a personagem, embora gere curiosidade. O problema é que isto não é mais trabalhado durante o longa e deixa uma ponta solta que só não passa batida por ser de grande importância para a compreensão das motivações da personagem, sendo uma falha no laço tão fortemente construído entre esta e o espectador.

Equilibrando comédia e drama como só um filme que não se prende a gêneros poderia fazer, “A Criada” é tecnicamente modesto e artisticamente inspirador. O roteiro consistente e a direção centrada na protagonista são as chaves mestras da obra, que ganhou quase trinta prêmios ao redor do mundo e merece ser visto pelos amantes de boas histórias que valorizam os dramas humanos.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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