Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 03 de setembro de 2011

O Homem do Futuro: Brasil mostra que pode fazer boa ficção científica

Em seu terceiro filme, Cláudio Torres entrega uma obra efetiva e emocionante, coroada por mais uma performance irretocável de Wagner Moura.

Se você pudesse voltar ao pior dia da sua vida, o que faria? Esse é o dilema de João (Wagner Moura), um amargurado cientista que se vê de volta à noite que o transformou para sempre em um “Zero”. Em seu terceiro filme, o diretor e roteirista Cláudio Torres volta a investir no fantástico, desta vez enveredando pelo terreno da ficção científica e se saindo muito bem nesta nova empreitada.

Buscando criar uma nova fonte de energia barata e renovável e prestes a ter sua verba cortada, João acidentalmente volta no tempo, para o dia em que foi humilhado publicamente por sua amada Helena (Alinne Moraes), em 1991, quando ganhou o apelido nada carinhoso de Zero. Decidido a alterar seu destino e ficar com a moça, João comete um dos maiores erros de sua vida, com resultados potencialmente trágicos.

É raro o cinema nacional investir em ficção científica, mas Torres lida com o gênero de maneira bastante natural. Se tratando de uma trama de viagem no tempo, eventuais furos se mostram quase inevitáveis, mas são perdoáveis considerando a complexidade do assunto e a leveza com a qual é lidado. O foco aqui, como em qualquer boa ficção, é nos efeitos que essas circunstâncias fantásticas exercem no ser humano, no caso, em João.

Ceder à tentação de alterar a ordem natural das coisas e as consequências disso dá ao protagonista uma nova perspectiva sobre sua vida. Reparem que, quando vemos a vida de João em 2011, ele é um homem infeliz, que não se furta em fazer mal a si mesmo. Ver como o rapaz inteligente, apaixonado e inocente de 1991 se transforma naquele homem amargurado é o que dá todo o peso dramático ao filme.

A estrutura do longa lida, de modo magnífico, com o potencial para o bem e para o mal existente em cada um de nós. João é, ao mesmo tempo, mocinho e vilão. Como todo ser humano, ele mostra um potencial incrível dentro de si para a virtude e para o pecado, para o egoísmo e abnegação. Nesse sentido, Wagner Moura dá um show ao viver o cientista em todas as suas diferentes fases e facetas, mostrando seu alcance para o drama e para a comédia (a cena no tribunal é absolutamente hilária).

O elenco coadjuvante também está ótimo. Alinne Moraes convence como o objeto de desejo de João, a grande motivação para o rancor e paixão do protagonista. Mesmo que algumas das ações e motivações de Helena no primeiro ato sejam um tanto quanto forçadas, tal problema não compromete de modo decisivo a personagem.

Fernando Ceylão cumpre seu papel com o proverbial melhor amigo e parceiro de João em suas diferentes versões, enquanto Gabriel Braga Nunes empresta sua persona antipática ao mauricinho egoísta Ricardo. E devo dizer que é sempre bom ver a talentosíssima Maria Luisa Mendonça em cena, mesmo não tendo muito tempo de cena.

Visualmente, o filme conta com efeitos especiais bastante caprichados para os padrões nacionais. Até mesmo a roupa de astronauta um tanto quanto brega usada por Zero no material publicitário da produção é muito bem explicada. Os fãs de sci-fi verão ótimas referências ao gênero espalhadas pela produção, indo de “Doctor Who” até às franquias “Stargate” e “O Exterminador do Futuro”, com tais referências funcionando como belos easter-eggs.

Embora o público não encontre uma trilha sonora orquestrada das mais memoráveis durante a projeção, a trama é embalada por ótimas músicas, com destaque para a utilização fantástica de “Creep” do Radiohead e “It’s The End of The World as We Know It (And I Feel Fine)” do REM, sem contar “Tempo Perdido” do Legião Urbana, que ganha uma versão muito bem executada dentro do filme.

A despeito de alguns problemas pontuais, como uma resolução um tanto simples demais e o marketing descarado do iPhone no terceiro ato, “O Homem do Futuro” é prova que é possível se fazer uma ficção científica de qualidade e inteligente aqui no Brasil e de que o nosso cinema não se resume a “humor” chulo ou tragédias sociais.

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Thiago Siqueira é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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