Novos relatos revelam descaso da Marvel e de grandes produtoras com estúdios de efeitos visuais em Hollywood
Artistas revelam um cenário extremamente insalubre para quem trabalha fazendo a magia que nos entretém e inspira.
(Imagem: Getty Images)
Ao longo das últimas semanas, uma série de denúncias acerca do ambiente insalubre e abusivo na indústria dos efeitos visuais em Hollywood veio à tona. Agora, o io9 revela um pouco mais do descompasso entre os estúdios de VFX e os grandes estúdios de produtoras de Hollywood, e como essa relação desigual é prejudicial para apenas uma dessas partes.
Quando vemos o making-of de grandes produções do cinema atual, o processo é encantador. Mas os avanços e a tecnologia de ponta utilizada para compor cenas com elementos fantásticos – e impossíveis de forma prática – escondem também uma história de descaso por parte dos grandes nomes do cinema (produtoras e cineastas de renome que levam o público às salas) em relação aos funcionários e pessoas invisíveis que de fato fazem a magia do cinema acontecer nas telas.
Para chegar no ponto em que chegou, é preciso compreender que, em essência, trabalhar com estúdios e casas de VFX é como qualquer outro projeto no mundo corporativo. As produtoras enviam para os estúdios um dossiê de cenas que precisam desse serviço. As descrições das cenas, no entanto, podem ser simplórias, como “uma nave alienígena aparece”. Com isso em mãos, as casas elaboram suas propostas e orçamentos, que podem variar de uma para outra tendo em vista o quão vagas normalmente são as descrições. Os estúdios, como todo cliente querendo manter custos ao mínimo, tendem a selecionar o mais barato. Um dos artistas de VFX ouvidos dá uma descrição da situação:
“É uma corrida ao fundo do poço. Porque quando as grandes produtoras dizem que precisam do trabalho feito, [os estúdios de VFX] cortam seus orçamentos para algo menor que os dos outros de tal forma que, quando eles finalmente conseguem o contrato, sua proposta está tão baixa que eles têm sorte de não ficar no vermelho. Então isso força os estúdios de efeitos visuais a operar em margens muito baixas.”
O principal vilão mencionado nas últimas semanas é ninguém menos que a Marvel Studios, leviatã midiático que opera em cinema e televisão com dezenas de projetos em desenvolvimento simultaneamente. Com uma gama tão grande de produções carecendo de efeitos visuais, a produtora costuma contratar diversas casas de VFX mundo afora. Ou seja, não apenas a competição por contratos entre as casas é feroz no âmbito doméstico em Hollywood, como elas ainda têm que ser mais em conta do que a concorrência estrangeira:
“Por exemplo, o Reino Unido não tem hora extra paga em nenhuma indústria. E como eles não têm a obrigação legal de pagar ninguém pela hora extra, quando fazemos propostas por uma série que pode custá-las US$ 15 milhões pelo trabalho, um estúdio britânico pode falar ‘bom, fazemos por dez’. Então se eles amontoarem 200 horas a mais por semana em Londres, isso não afeta o orçamento. Não custa nada ao estúdio te forçar a trabalhar com essa entrega imensa.”
No fim, mal há retorno financeiro para as casas de VFX, segundo outro artista: “Já vi os registros. Apesar de trabalhar em filmes de grande porte, a margem de lucro para esses estúdios fica na casa de um dígito.” E, a seguir, elas já têm que entrar na briga por outro projeto – que provavelmente será da Marvel, de novo.
Os anúncios das Fases 5 e 6 do MCU atingiu a indústria dos efeitos visuais com força, pois os artistas sabem que terão que lidar com prazos impossíveis de se manter frente uma carga de trabalho kafkiana. Apesar de celebrados pelo público e do imenso sucesso de bilheteria, filmes como “Vingadores: Guerra Infinita” e “Vingadores: Ultimato” causaram problemas que o público nem imagina:
“O pior foi quando ‘Guerra Infinita’ e ‘Ultimato’ estavam para ser lançados. Eles adiantaram esses lançamentos em um mês, mas não nos falaram. Eu lembro de estar no estúdio com minha equipe e um dos meus artistas chega e fala ‘vocês viram isso?’, e mostra um artigo falando do adiantamento. Então descobrimos através de um release de imprensa que teríamos um mês a menos para trabalhar em todas essas cenas.”
O descaso da Marvel em relação às casas de VFX é algo conhecido em Hollywood. As causas são diversas: do próprio volume de projetos ao fato de cada um conta com equipes de produção próprias, muitas vezes sob a lideranças de diretores inexperientes. É comum ter que lidar com interferências, demora na aprovação de composições já concluídas e pedidos de alteração de cenas já em estágios avançados da produção, o que acaba por onerar ainda mais o lado mais fraco de uma corda já esticada ao limite.
A onda de denúncias contra a Marvel começou a aparecer com mais força após as críticas aos efeitos visuais de “Mulher-Hulk: Defensora de Heróis“. Ainda que a própria equipe da série tenha se manifestado a favor dos artistas de VFX, é essencial notar que o produto final é consequência de fatores que vão além da arte produzida nos estúdios digitais:
“Quando você recebe uma placa [um enquadramento inalterado, tal qual foi capturado pela câmera] só com o rosto de alguém projetado contra uma tela mal iluminada, não há mesmo nada que você possa fazer para deixá-lo mais realista. Isso é algo que nunca é comentado. Todo mundo só fala ‘oh, os efeitos visuais estão uma m****’. E eu fico tipo, ‘não, vocês deveriam ter visto a placa, deveriam ter visto o que nos foi dado, porque aquilo sim estava uma m****’.”
Mas o problema vai além da Marvel. Um dos casos mais conhecidos na indústria é o do estúdio Rhythm and Hues, que declarou falência antes de conquistar o Oscar de Melhores Efeitos Visuais por “As Aventuras de Pi“, de Ang Lee, e chegou até a gerar protestos à época.
“Em essência, ao longo do filme, o diretor [Ang Lee] fez uma mudança grande no tigre, então a Rhythm and Hues teve que voltar e refazer quase todo seu trabalho. E isso custou a eles tanto dinheiro, e eles já estavam trabalhando em uma margem de lucro tão fina, que acabou os levando à falência. Então o estúdio literalmente faliu antes de conquistar um Oscar de Melhores Efeitos Visuais.”
Outro caso infame é o de “Game of Thrones“, série que exigia para um episódio de uma hora de duração o mesmo tratamento atribuído a um longa-metragem:
“As produtoras estão empurrando prazos irreais para conseguir os efeitos visuais. ‘Game of Thrones’ foi uma das séries mais difíceis de se trabalhar, porque você está entregando para um episódio efeitos da qualidade de um longa-metragem, vezes dez, na mesma quantidade de tempo em que você teria para fazer um único filme. Já trabalhei em talvez duas séries em que eles tinham orçamentos e prazos realistas. Normalmente você sabe logo de cara que você não vai trabalhar como precisa.”
Infelizmente, enquanto os grandes estúdios e produtoras de Hollywood continuarem fazendo dinheiro em cima desse tipo de exploração, não há previsão de melhora. O ramo de efeitos visuais não é tão amplo e desenvolvido quanto se imagina, então mudar de emprego não é tão simples:
“É muito da mesma sujeira. Os mesmos problemas circulando pelas mesmas empresas. […] Quase todo estúdio tem algum tipo de ‘sala do choro’, onde as pessoas vão chorar por dez minutos e depois voltam para terminar o trabalho. Já vi artistas acionarem o R.H. para dizer ‘temos que tirar você dessa série porque não é saudável e estamos preocupados com a sua segurança’. Já houve brigas de soco no meio do estúdio. As pessoas chegam ao limite. Já estive em séries em que fazíamos 60, 70 horas por semana por cinco semanas seguidas, cheio de gente que não viam mais suas famílias. E isso é o padrão da indústria.”
Quando vemos o produto final nas telas, não se imagina o trabalho que há por trás de míseros segundos dentro de um filme ou série. E esse é um problema que o público nem imagina existir. “Uma tomada básica de três segundos de Robert Downey Jr. com os hologramas flutuando ao seu redor [em ‘Homem de Ferro 2’]? Provavelmente 50 horas“, diz um dos artistas. E uma imagem em “Ultimato“, com dezenas de personagens? “Centenas e centenas de horas, dúzias de estúdios, centenas de pessoas“. Um cenário extremamente insalubre para quem trabalha fazendo a magia que nos entretém e inspira.
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