Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 06 de fevereiro de 2019

Papillon (2017): refém da arte

Remake toma decisões diferentes do filme original, chegando a melhorar alguns aspectos, mas passa despercebido pelo público.

A arte por vezes se confunde com a vida, o que nos leva à questão sobre quem imita quem. Seria a arte inspirada pelo nosso cotidiano, ou seria a vida baseada nas influências da arte? Se a arte for um retrato da vida, vivemos então como prisioneiros? Se a vida é reflexo da arte, somos condenados a fugir das cordas impostas pelos autores? E se formos nós esses autores? Essas são questões que nos trazem a grande obra literária Papillon, adaptada para os cinema em 1973, e agora com este remake de 2017 – que não consegue alcançar o mesmo patamar do filme original.

Papillon é o nome do protagonista do longa, baseado em “fatos reais”. Trata-se de uma falsa autobiografia escrita por Henri Charrière, escritor francês que conta sua história de um ex-militar da marinha, que se perde na vida e passa a aplicar golpes. Acaba sendo condenado à prisão perpétua por um assassinato que jura não ter cometido e é exilado na Guiana Francesa. Porém, a veracidade da história, que se passa nos anos 1930, é bastante contestada. Estudos dizem que Charrière se apropriou da autoria de outro escritor, ou até que nem todos os fatos da trama são verídicos.

Fato é que, apesar do fim trágico de Charrière, o livro fez fama, se tornou filme e conquistou para seu currículo uma indicação ao Oscar de Melhor Trilha Sonora e outra no Globo de Ouro, de Melhor Ator Dramático para Steve McQueen. Infelizmente, o remake de 2017 não atinge o mesmo nível do original.

“Papillon” não é ruim, pelo contrário, mas acaba caindo em dilemas que muito contribuem para o debate artístico, contudo não se encaixam tão bem assim na tela. O remake toma decisões diferentes da obra de de 1973, a começar pelo fato de assumir a crença na história de Charrière, introduzindo o personagem – bem interpretado por Charlie Hunmam (“Rei Arthur: A Lenda da Espada”) -, em seus afazeres cotidianos. No original, já somos apresentados ao homem preso, sem saber quem ele é e o que fazia; aqui já temos um romance e uma condenação injusta que dão uma boa carga emocional logo no início do filme, mas que logo se mostra descartável. O próprio roteiro deixa isso claro na despedida de Papillon à sua amada Nenette (Eve Hewson, “Robin Hood: A Origem”). Não apenas é algo esquecido ao longo da produção, apesar de serem cenas muito boas, mas tira a peculiaridade da obra de pôr em dúvida os atos de Papillon.

Já no exílio, o condenado começa a planejar sua fuga – e passará assim praticamente o resto de sua vida. É muito interessante como ambos os filmes mostram de maneira crua a crueldade que é vivida nesse lugar, e toda a desumanização, que acaba se tornando um trunfo para o protagonista após anos na solitária. A desnecessária introdução também afeta bastante este ponto do longa, já que assume Papillon como o personagem principal mor, quando o original acompanha vários prisioneiros, que aqui acabam ficando em segundo plano. Mas o problema maior é a falta de evolução no personagem de Hunmam. O avanço de tempo na obra é bem marcante, mas Papillon não muda sua personalidade, permanecendo o mesmo homem apesar de tudo o que passou.

Mas justiça seja feita, o sofrimento pelo qual passam os prisioneiros é angustiante, e isso o filme consegue transmitir bem. E com tanto sofrimento, faz-se necessária uma boa amizade. A relação entre Papillon e Louis Dega não possui o mesmo peso como no original, mas Rami Malek (“Bohemian Rhapsody”) entrega um bom personagem, e a química com Charlie é boa. Tendo início numa troca de favores para proteção de Dega e facilitação da fuga de Papillon, os prisioneiros criam uma bom laço que os tornam inseparáveis, o que dá uma boa carga emocional para o terceiro ato. Tudo isso torna o longa muito simbólico, e pode-se destacar aqui o segundo ato, onde vemos a claustrofóbica solitária onde Papillon passou anos de sua vida. Se no original as cenas são muito mais expositivas em relação a como era a vida nesse tipo de prisão, no remake o simbolismo é muito impactante, demonstrando bem a agonia de Charrière.

“Papillon” é um bom filme, que mostra a realidade que foi o exílio na Guiana Francesa e acompanha a fuga fascinante de Henri Charrière. Não conseguiu alcançar o reconhecimento que teve o primeiro, e isso talvez se deva à época em que foi lançado (no Brasil, o original chegou em 1974, em plena ditadura militar, e fez sucesso devido ao tema abordado). A obra poderia ter sido melhor adaptada, mas está longe de se tornar inútil e descartável. Como diz o próprio Charrière, “esta é a história de muitos homens”. Talvez seja isso o que o diretor Michael Noer (Før Frosten”) quisesse enfatizar em Papillon – o que acaba caindo na personalidade enraizada do personagem. Ou seria, de fato, a realidade tudo o que foi mostrado? Se Henri Charrière conseguiu tamanha façanha, continua um mistério. O único fato aqui é que permanecemos reféns da arte (ou da dúvida).

João Victor Barros
@jotaerrebarros

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