Cinema com Rapadura

Entrevistas   quinta-feira, 24 de junho de 2021

[Entrevista] Manhãs de Setembro | Liniker, elenco e equipe falam sobre a importante representatividade da série

O Cinema com Rapadura teve a oportunidade de conversar com a equipe da nova série do Amazon Prime Video, que inova a maneira de se amplificar a representatividade.

[Entrevista] Manhãs de Setembro | Liniker, elenco e equipe falam sobre a importante representatividade da série>

A indústria audiovisual brasileira tem se expandido bastante nos últimos anos, amplificada através de parcerias com grandes plataformas. Munidas de enorme potencial na criação de histórias, não são poucas as produções do país que tem encontrado lugar nos principais serviços de streaming, tendência inaugurada por sucessos como o encerrado no ano passado, “3%“, por exemplo. Construídas por equipes múltiplas e assuntos carregados de relevância, essas narrativas tem conquistado um alcance antes impensável, rompendo barreiras internacionais e dando um estrondoso espaço a vozes tradicionalmente marginalizadas.

Exemplo disso é a mais nova atração do Amazon Prime Video, “Manhãs de Setembro“, série que se inspira na icônica representante da Jovem Guarda musical, Vanusa –  dona de uma canção homônima cuja letra atua aqui como norte – para construir a jornada de emancipação da aspirante Cassandra, artista que finalmente começa a alcançar suas primeiras conquistas como mulher independente. Interpretada pela cantora trans Liniker, que estreia em seu primeiro papel em uma grande produção, a protagonista adentra um conflituoso dilema quando Leide (Karine Teles) bate à sua porta junto ao filho, Gersinho (Gustavo Coelho), um menino de 12 anos que diz ter nela o pai que nunca conheceu.

Alicercada por uma trama bastante diversa, e que tem como grande mérito a sua riqueza temática ao abordar questões como aceitação, bases familiares, rótulos sociais e muitos outras, a atração estreia sua primeira temporada nesta sexta-feira (25), com distribuição programada para mais de 240 países para além do Brasil. Em homenagem a esse grandioso lançamento, o Cinema com Rapadura teve a oportunidade de assistir à primeira temporada em antemão e ainda de participar de uma coletiva de imprensa, seguida de envolventes mesas redondas, em que a equipe discutiu sobre importantes aspectos do projeto.

Contando com a participação da própria Liniker, da atriz Karine Teles, da roteirista Alice Marcone e outros importantes idealizadores da produção, a reunião rendeu interessantes reflexões sobre o impacto de histórias como essa, bem como muito abordou os avanços já conquistados na representação de personagens negras e/ou pertencentes ao grupo LGBTQIA+ e os passos que ainda precisam ser dados. Veja os destaques abaixo.

Malu Miranda (Head de Conteúdo Original para o Brasil do Amazon Studios): Desde o início, esse projeto chamou muita atenção, e acho que principalmente por conta da complexidade das personagens. A jornada da Cassandra, por exemplo, de cara, sempre foi muito específica, e acho que são essas especificidades, a força dessas figuras, que dá força a uma série. Além de ser um projeto, claro, que fala muito sobre aceitação, de si próprio e daqueles que estão ao nosso lado, aspecto que é muito poderoso tendo em vista a situação que estamos atravessando, lançar uma história sobre as diferentes formas de amar é fundamental no mundo agora. É um ponto de luz, de alegria, que muito precisamos no momento atual, e que cumpre a responsabilidade de transmissão dessas mensagens pelo mundo afora, onde existem diversas Cassandras, falando em diferentes línguas.

Liniker (Cassandra): O que mais me atraiu no roteiro foi a possibilidade de criar um imaginário real sobre uma pessoa trans, tendo em vista as múltiplas formas de violência às quais pessoas trans e pretas são submetidas no país em que vivemos. Então, subverter essa lógica violenta e criar essa personagem a partir do afeto, das relações que tecem a rede de afeto que a Cassandra tem, foi um dos aspectos que mais me emocionou no projeto. Ela possui uma relação humana e social, não está ainda à margem como muitos olhares cinematográficos propõem, ela já está inserida nesse contexto, humanizada. Nesse sentido a Amazon trouxe um grande diferencial, e narrativas como essa, que humanizam essas personagens, são essenciais e uma grande responsabilidade dos criadores de narrativas.

Alice Marcone (musicista e roteirista): Como uma pessoa trans e preta, eu consigo aprender a ser quem eu sou vendo histórias como essa. E principalmente em um mundo como o em que vivemos, onde estamos constantemente submetidos a abalos de nossa saúde mental, é primordial que eu me enxergue dentro de narrativas que vão além dessa representação marginalizada e vinculem essas figuras a temáticas como aceitação e família. Não apenas para que nós próprios possamos nos enxergar mas para que os demais também nos vejam, e amplifique a necessária aceitação. 

Luis Pinheiro (diretor)Ter uma protagonista LGBTQIA+ e preta é também, nesse contexto de exacerbação da extrema direita, uma potente forma de resistência. Frente a um presidente que ameaçou filtrar temáticas e personagens, e que de fato restringiu o dinheiro direcionado ao Cinema, é essencial ver veículos como o Amazon Prime Video permitindo que sejam abordados os mais diversos temas e dando voz às mais variadas personagens, independente de suas características. E é lindo como esse projeto já está um passo adiante. Não estamos falando de uma transição, e tão pouco centralizando nos preconceitos cotidianamente sentidos. É claro que eles estão lá, mas estamos tratando de temas banais como a formação de família, aceitação, trazendo uma personagem trans para um universo de discussão que outras visões nem sempre proporcionam. Isso é lindo.

Josefina Trotta (roteirista): Eu consigo perceber que estas mudanças felizmente vêm acontecendo não apenas por uma mudança em frente às telas, mas também pela maior diversificação das equipes por trás dessas obras, como por exemplo a das salas de roteiros. Na produção de “Manhãs de Setembro” desenvolvemos um grupo muito variado, que deu voz à figura feminina, à figura trans, negra, e isso é um avanço enorme, estamos evoluindo. Mas eu particularmente ainda acredito que essas salas de roteiro, por exemplo, devem ser ainda mais inclusivas e diferenciadas.

Liniker (Cassandra): Em relação ao papel da Vanusa na série, é interessante perceber como para a Cassandra ela vai muito além de uma cantora, atuando como um verdadeiro norte. Como um destaque da sua época, que sempre inovou e trouxe novidades para o cenário musical desde o início da sua carreira nos anos 60, ela movimenta uma protagonista que também busca a sua reinvenção, funcionando como uma espécie de porto seguro para ela. Ela dá colo para a Cassandra, e nesse processo eu passei a apreciar ainda mais. Foi uma experiência bastante intensa, e acho que essa série resgata esse potencial, na contemporaneidade, dos símbolos, que a Vanusa tanto exerceu no passado e guarda, com seu legado, até hoje.

Alice Marcone (musicista e roteirista): Eu vejo que vamos realmente começar a falar de inclusão quando a gente entender que a transgeneridade, que personagens ou equipes LGBTQIA+, negras, não brancas, elas não devem ser o tema das produções em que aparecem. Quando elas estrelarem produções em que o arco dramáticos delas não está diretamente ligado à transição, à aceitação da sua identidade de gênero, aí sim estaremos falando de representatividade de fato, principalmente em um mercado como o brasileiro, que ainda é tão nichado. Um exemplo muito bom disso é o trabalho do Jordan Peele, que consegue inovar a representação no terror ao inserir protagonistas negros em narrativas que não obrigatoriamente tratam de racismo, apesar de nunca ignorar o mesmo, contando histórias diversas em obras como “Nós” e “Twilight Zone”, por exemplo. Acho que “Manhãs de Setembro” faz isso muito bem e estamos caminhando em direção a essas mudanças.

Karine Teles (Leide): Eu penso que a preparação para uma determinada personagem nada mais é do que uma experiência coletiva. Então a Leide cresceu muito na interação com a Cassandra, que inclusive foi ao saber que seria interpretada pela Liniker que aceitei o projeto, e com o Gustavo Coelho, por exemplo, que mesmo apenas com 12 anos já é gigantesco, um menino incrível, super dedicado e talentoso. Então foi nesse trabalho conjunto, entendendo as pessoas que estavam ao redor daquela personagem, o contexto em que ela estava inserida, que eu construí essa personagem, ajudando junto a eles a deslocar a atenção para essas figuras que estão ali, presentes, mas nem sempre recebem essa atenção. Nesse aspecto, inclusive, eu me identifico demais com a Leide, não me vejo como alguém tão afastada dela. Eu demorei muito tempo para conseguir me sustentar como atriz, batalhei durante muito tempo, e sempre vou me esforçar para ajudar minha família de classe média baixa. Então é uma responsabilidade conjunta na qual estamos todos conectados.

Liniker (Cassandra): Nesse sentido, acho que muitos membros da comunidade LGBTQIA+, independente do seu recorte, vão conseguir se enxergar através dessa lógica da reconstrução dos laços sanguíneos que a série propõe. Não é incomum muitos de nós serem desassociados, por preconceitos e intolerâncias, de suas famílias sanguíneas, encontrando aceitação em novas redes de afeto que vão se formando ao longo de nossas jornadas pessoais. Por conta disso, acho que a série deixa claro que somos nós que nos acolhemos, isso parte da própria comunidade, e penso que isso pode ressignificar a aceitação mesmo no interior dos núcleos familiares, que embora esteja muito presente no meu, não é a realidade de muitas pessoas.

Composta por cinco episódios de meia hora cada, a primeira temporada de “Manhãs de Setembro” traz uma trama inovadora e repleta de diversidade. Realizada por múltiplas vozes e alavancada pela riqueza de seus assuntos, a série é um imperdível exercício de amor e aceitação que merece ser assistido. Leia nossa crítica.

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Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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