Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A Noite das Bruxas (2023): mistério funciona e entretém, mas terror é aquém

Kenneth Branagh como diretor/protagonista e Michael Green no roteiro compreendem melhor o material base e se arriscam para trazer frescor à terceira adaptação da obra de Agatha Christie da dupla — e o saldo final é positivo.

Kenneth Branagh já atuou, dirigiu e roteirizou muitos trabalhos reconhecidos, de adaptações shakespearianas a blockbusters de Disney e Marvel, além de seu premiado drama “Belfast” (2021), que lhe rendeu um Oscar. Dentre tantos projetos, um que aparenta ter a afeição do cineasta é a adaptação do icônico detetive Hercule Poirot em “Assassinato no Expresso do Oriente” (2017) e “Morte no Nilo” (2022), ambos baseados nas obras de Agatha Christie. Pouco mais de uma ano após a mais recente incursão, Branagh retorna como diretor e protagonista em “A Noite das Bruxas“, trazendo uma abordagem alternativa ao tradicional gênero whodunit retratado nos filmes anteriores.

O novo longa se diferencia ao introduzir elementos de terror na trilogia. A trama é ambientada na Veneza pós-Segunda Guerra Mundial, na véspera do Dia de Todos os Santos (data e época cuidadosamente escolhidas para impactar diretamente alguns personagens). O detetive Poirot é convidado por uma velha amiga a sair de seu exílio auto-imposto e testemunhar uma sessão espírita. Rapidamente, o lugar se se torna cenário de um misterioso assassinato que desafia as convicções do protagonista.

O sucesso de um whodunit (ou “quem fez isso?”) depende de um equilíbrio delicado entre mistério e revelação, e “A Noite das Bruxas” mantém essa tradição com eficiência. O roteiro de Michael Green adapta livremente a obra de Christie, entregando os pontos-chave da trama de forma a manter o público intrigado, sem tornar a solução óbvia demais, mas também sem escolher caminhos tão inacessíveis que apenas o genial detetive poderia desvendar. No entanto, Green se aproveita da brevidade do material base para inserir elementos de terror na trama, incluindo jump scares que, embora façam sentido com a proposta inicial, parecem por vezes destoantes do tom geral do filme. Embora essa tentativa de adicionar um toque de horror à história seja louvável e funcione em vários momentos, às vezes a forma como isto é introduzido pode parecer forçada e fora de tom.

A direção de Kenneth Branagh é notável desde o fragmento inicial. Utilizando ângulos holandeses, lentes grande-angulares e uma edição cheia de cortes e elipses, ele cria uma atmosfera por vezes sombria e desconfortável. Esses elementos visuais contribuem significativamente para a sensação de incerteza que permeia o filme, deixando sempre no ar a lembrança de que algo não está certo naquele lugar. Os recursos da cinematografia por si só já seriam capazes de construir a aura de terror no longa bem mais do que artifícios como aparições e jump scares. Porém, a edição excessivamente picotada às vezes pode prejudicar a compreensão do que está acontecendo em cena, tornando algumas sequências confusas.

Embora haja nomes de destaque, como a recém-oscarizada Michelle Yeoh, “A Noite das Bruxas” felizmente não é tão dependente do star power do elenco como seus predecessores. Vemos diferentes tons de atuação, desde a comedida Olga Seminoff (Camille Cottin) até os mais explosivos irmãos Nicholas (Ali Khan) e Desdemona (Emma Laird). Branagh, mais uma vez, se destaca não apenas como o detetive meticuloso e cheio de tiques, mas também ao explorar os sentimentos reclusos de seu personagem, adicionando profundidade à sua atuação. Tina Fey como Ariadne Oliver, escritora de romances policiais e amiga de Poirot, funciona bem como coadjuvante direta, sempre desafiando o protagonista de maneira amigável.

Em resumo, “A Noite das Bruxas” é uma boa contribuição de Kenneth Branagh para a saga de Hercule Poirot. O filme é o melhor da trilogia em capturar a essência do gênero whodunit, se beneficiando de uma escala menor de produção. Adicionar elementos de terror cria uma nova e inédita camada que casa bem com a estética do diretor, embora alguns artifícios possam ser questionáveis em certos momentos. Ao menos no quesito entretenimento a obra cumpre o que se espera dela, mostrando que o tão estimado projeto de Branagh precisa muito mais de uma história interessante do que de um elenco inchado.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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