Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 05 de agosto de 2022

Sandman (Netflix, 1ª Temporada): os ambiciosos primeiros passos no Sonhar

Considerando quão amado “The Sandman” é pelos fãs de quadrinhos e quão difícil é sua adaptação, haja vista o escopo da trama, a empreitada da Netflix era perigosamente ambiciosa. Felizmente, a equipe capitaneada por Neil Gaiman fez jus ao material, com uma primeira temporada quase que irrepreensível, embora algumas mudanças possam incomodar inicialmente os adeptos do original.

Qual a importância dos sonhos? Eles mantêm o equilíbrio entre nossas esperanças e medos, anseios e terrores, memórias e dores. Cerca de trinta anos atrás, o escritor Neil Gaiman buscou inspiração no mundo onírico para reviver um personagem pulp da Era de Ouro da DC Comics, indo muito além disso, dando forma não só ao Sonho, mas a uma desajustada família de encarnações perpétuas de aspectos da existência. Desencarnação, Destino, Destruição, Desejo, Desespero, Delírio (Deleite?) e, claro, Devaneio. Isso é “Sandman”.

Por décadas, Gaiman foi inundado com propostas de produtores a levar seu Sandman para o cinema, uma mais absurda do que a outra, algumas distorcendo as bem amarradas trama e mitologia até torná-las quase irreconhecíveis. Aspectos de sua obra foram trazidos em “Lúcifer”, série que começou na Fox, mas acabou na Netflix — justamente onde a adaptação de “Sandman” finalmente encontrou seu lar.

Produzida pelo próprio Gaiman, ao lado de David S. Goyer (da trilogia “O Cavaleiro das Trevas”) e Allan Heinberg (“Mulher-Maravilha”), a temporada inicial de “Sandman” adapta os dois primeiros arcos de histórias das HQs, “Prelúdios e Noturnos” e “A Casa de Bonecas”. Ao lado de seus coprodutores e de uma sala de roteiristas obviamente apaixonada pelo material original, o autor e sua equipe conseguiram criar o que pode ser a melhor versão audiovisual possível para a história, mesmo que alguns fãs de longa data tenham de se acostumar com certas mudanças.

Na trama, Sonho (Tom Sturridge) é capturado por um mago vigarista (Charles Dance) e passa décadas afastado do seu reino, o Sonhar, o que causa a devastação do lugar e coloca os sonhadores do mundo em perigo, além de levar à fuga de sonhos e pesadelos para o mundo desperto. Finalmente livre, um debilitado Sonho deve restaurar o seu reino e trazer de volta as entidades que escaparam, dentre eles um pesadelo particularmente perigoso chamado Coríntio (Boyd Holbrook), em uma jornada que o levará até mesmo para o meio do Inferno.

Uma coisa deve ficar clara: adaptação não significa colocar ipsis litteris aquilo que está nas páginas para as telas. Algumas mudanças são necessárias, não só por quadrinhos e TV serem mídias diferentes, mas também por conta da passagem do tempo e por se tratar de uma propriedade intelectual que, originalmente, estava no meio do Universo DC. Assim, membros da Liga da Justiça que apareciam na história foram limados, bem como John Constantine fora substituído na trama por uma versão contemporânea da Lady Johanna Constantine (Jenna Coleman), justamente porque o popular anti-herói está nos planos da Warner para outros projetos.

Outras alterações se dão por motivos de narrativa, com Gaiman aproveitando que sua obra já está concluída para trazer já aqui elementos que só foram introduzidos na nona arte posteriormente, o que amarra melhor a saga e dá mais ferramentas para o storytelling. O corvo Matthew (voz de Patton Oswald), por exemplo. Nas HQs ele é introduzido apenas em arcos posteriores, mas é trazido para esse início para servir como “orelha” de Sonho e agir um pouco como sua consciência — papéis que ele também desempenha no original, diga-se. Afinal, considerando que, colocando em termos mundanos, uma das tramas centrais dessa primeira temporada é Sonho tentando reerguer o seu reino e status, como um rei inicialmente ignorante de seu papel no grande esquema das coisas, Matthew age como o “bobo da corte”, que, em sua insignificância, conta verdades que seu arrogante mestre não quer ouvir, algo parecido com o que Kurosawa fez com o Soberano e o Bobo no clássico “Ran”.

Nisso, temos o verdadeiro achado que foi Tom Sturridge, que encontrou a voz perfeita para Sonho, diga-se. Sturridge tinha pela frente um protagonista difícil, por conta da prepotência deste. Conseguir fazer com que o público empatize com uma figura tão mimada e egoísta é uma tarefa complicada para qualquer intérprete. Entretanto, o ator consegue fazer com que Sonho tenha relances de humanidade, transformando o Rei do Sonhar em um “trabalho em progresso”, em especial nas suas interações com Matthew, sua segunda em comando Lucienne (Vivienne Acheampong) e sua irmã mais velha, Morte, vivida com uma delicadeza ímpar por Kirby Howell-Baptiste, com a atriz sendo o ponto alto do sexto — e melhor — episódio da temporada.

Ao longo dos dois arcos, o elenco se modifica constantemente, mas alguns destaques são merecidos. Jenna Coleman se apresenta charmosa e autodestrutiva como uma autêntica Constantine (e vê-la como uma breve e impertinente companheira de viagem de um imortal branquelo e arrogante deu flashbacks de seu tempo junto a um certo Senhor do Tempo). A novata Vanesu Samunyai empresta a culpa e ingenuidade necessárias para sua Rose Walker no segundo arco.

E os antagonistas de “Sandman” são um espetáculo à parte, funcionando, cada um à sua maneira, como espelhos distorcidos da humanidade, com o já citado Boyd Holbrook exalando charme e perigo como o Coríntio, e o sempre competente David Thewlis fazendo de seu John Dee um perigoso fanático que vê sempre o pior do homem, levando sua visão ao limite durante o tenso quinto episódio, que tem claras influências do marco surrealista “Um Cão Andaluz”, de Luis Buñuel. E Mason Alexander Park já começa a dizer para que Desejo veio, com seus “joguinhos” com Sonho dando o tom de uma rivalidade em família como nunca vista.

Existem algumas pequenas derrapadas, que podem ser corrigidas com o tempo. Embora Gwendoline Christie se saia bem no “duelo” com Tom Sturridge, sua Lúcifer ainda necessita de um pouco mais de malícia e sedução, se postando com um ar excessivamente etéreo que não encaixou muito bem, o que contrasta com o acerto que foi a criação do inferno onde ela está inserida, construído pelos próprios condenados. Neste sentido, em outros momentos, a fotografia e a direção de arte, geralmente eficientes na criação do clima necessário da narrativa, surgem demasiadamente “limpas”, o que tira um pouco o peso desses momentos específicos, fazendo falta o tom mais sujo que a HQ entrega — e ver as artes magníficas do lendário Dave McKean nos créditos dos episódios reforça ainda mais essa sensação.

Cumprindo com louvor seu papel de introduzir esse universo tão único de personagens e situações, a primeira temporada de “Sandman” é a realização de um sonho quase impossível, que, em seus muitos acertos, já deixa o caminho preparado para as estações vindouras.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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