Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 21 de junho de 2022

Barry (HBO, 3ª Temporada): tragicômica jornada de destruição

Harmonizando magistralmente humor, drama e violência, o terceiro ano de "Barry" impressiona pela organicidade da teia tóxica através da qual tece temática e personagens, convertendo os últimos em prisioneiros de seus próprios e viciantes erros.

Reconhecido por sua bem-sucedida carreira dentro do mundo da comédia, Bill Hader amplificou a sua já consolidada legião de fãs — formada especialmente por suas aclamadas participações no programa estadunidense “Saturday Night Live” — ao lançar a interessante “Barry“, série produzida pela HBO que daria luz ao protagonista de sua vida. Permeando as complexidades proporcionadas pelas intersecções entre a realidade e a interpretação, a atração consegue harmonizar como poucas o humor e a dramaticidade que circundam o microcosmos de seu problemático personagem principal, cuja escuridão atinge as maiores proporções vistas até então em sua terceira temporada.

Deprimido com a espiral de constante violência da qual tentou escapar através da vida como ator, Barry Berkamn se vê totalmente incapaz de fugir de sua própria natureza, assombrado pelas incontáveis mortes que escolheu provocar ao final do segundo ano da produção. A procura de pequenos bicos como assassino de aluguel parece ser o único retorno possível, e até mesmo o declínio de seu relacionamento com a egocentrada Sally (Sarah Goldberg) não o impulsiona suficientemente para buscar outras soluções. Tudo piora quando o seu antigo mentor, o professor de atuação Gene M. Cousineau (Henry Winkler), descobre ter sido Barry o responsável pelo assassinato de sua amada companheira, a policial Janice Moss (Paula Newsome), e resolve partir em busca de vingança com as suas próprias mãos.

Partindo de um gancho bastante sombrio, é interessante perceber como os novos episódios se distanciam da comicidade disfarçante que marcou a série até o momento, recusando-se a maquiar a verdadeira essência de seu odioso personagem central. Seria injusto dizer que isso determina uma temporada afastada da comédia, que talvez aqui se apresente em sua forma mais afiada. Entretanto, é louvável a forma como Hader escancara os grandes motivadores de sua figura-título, amplificando a perdição interior de Barry de modo a induzir o espectador a questionar o que o leva a acompanhá-lo, e torcer por suas evoluções, em primeiro lugar. As faces internas e mais primitivas do personagem estão aqui mais associadas às suas ações desmedidas, que antes tanto buscou mascarar pelos investimentos no novo hobby, por mais destruidoras que possam ser as consequências.

Nesse sentido, e mesmo que a nova leva seja aquela que mais se distancia, ativamente, do registro de apresentações e atuações propriamente dito — inclusive aposentando o teatro onde a relação entre Gene e Barry floresceu logo no ínicio —, o seriado evolui o seu discurso a respeito dos mecanismos humanos que nos permitem abdicar, pelo menos momentaneamente, de nossos traços mais verdadeiros. Uma vez mais consciente dessa dimensão, a direção prioriza assim um estreitamento entre os cinco protagonistas e seus defeitos mais carnais, não temendo o retrocesso de algumas evoluções que isso inevitavelmente promove.

Por conta disso, é dolorosa a relação intrínseca criada pela direção — assinada pelo próprio Bill Hader em cinco dos oito capítulos lançados — que associa os arcos destrutivos daqueles que acompanhamos, definindo a toxicidade de Barry como um ponto de partida vicioso e de fácil propagação. Sendo assim, a corrupção que Sally atravessa, por exemplo, por meio da qual acaba acentuando traços perigosos que sempre estiveram adormecidos em sua personalidade, é igualmente aterradora, desenhando incontáveis problemáticas por detrás dos bastidores hollywoodianos. Mesmo que flerte com temáticas já usuais a respeito de relações abusivas, assédios trabalhistas e demais questões já industrializadas pela recente onda cinematográfica, é curiosa a maneira como a série vai além nessa dimensão, expandindo-a para um censo de autoconsciência metalinguística no que diz respeito aos manuseios da arte.

Paralela a essa interpretação, são também notáveis as mudanças de Gene ao longo da temporada, que agraciado com uma chance de redenção, passa a negar traços de sua antiga e vívida paixão. Dessa forma, e vinculada as tentativas de reparação de Barry (de crescimento profissional de Sally e talvez até do próprio Bill Hader no planejamento de sua grande obra televisiva), a temporada questiona uma manipulação egocêntrica do fazer artístico, que em muitas vezes se confunde entre a realização de discursos universais e reflexões autocentradas de seus autores. Mesmo que as últimas terminem por ser o grande disparador de alguns artistas, entretanto, seria correto diminuir o seu valor se eventualmente virem a se confundir com falas gerais, alcançando a identificação de diversos espectadores? Até que ponto impera a dissociação entre um criador e a sua personagem, e em que instância isso pode ser maléfico ou engrandecedor?

Mesmo que não se proponha a encontrar essas respostas, “Barry” permanece no exercício de distorcer os limites entre a realidade e a simulação em relação àqueles que acompanha. No caso do hilário NoHo Hank (Anthony Carrigan), por exemplo, o dócil representante da máfia chechena cujas facetas mais sinceras sempre estiveram em desconformidade com aquelas exigidas por seu cargo, isso acaba particularmente atrelado a busca por seu amor, materializado no amante impossível, membro de uma quadrilha inimiga, o boliviano Cristobal (Michael Irby). As idas e vindas dessa relação à la Romeu & Julieta são mais uma maneira que o seriado encontra para interseccionar o seu verdadeiro interior e a postura esperada de si, configurando um dos conflitos mais cômicos, e nem por isso menos desesperadores, da atração.

Merece destaque, ainda, as repetições viciosas também compartilhadas pelo abusivo Monroe Fuches (Stephen Root), constantemente provocado com condições oníricas de superação, mas permanentemente sabotado por seus mecanismos internos de perseguição. É desse contraste que acabam surgindo algumas das passagens mais dinâmicas e fantasiosas da temporada, que reafirmam a associação da mesma a diversos gêneros e imprimem várias das evoluções linguísticas que os episódios ultrapassaram durante os anos. Isso diz respeito tanto a forma orgânica como todos evoluem a trama geral em alguma instância, indo além das evoluções internas, como também ao maior equilíbrio entre a tônica mais sombria e os momentos mais engraçados, sem desconsiderar as empolgantes sequências de ação.

Em relação às últimas, merece destaque o sexto episódio da temporada, “710N”, que honra o legado deixado pelo magnético “Ronny/Lilly” para entregar uma surpreendente perseguição de motoqueiros, reencarnações do duro passado deixado pelo assassino implacável e que agora volta para persegui-lo violentamente. Por conta desse e outros momentos, o terceiro ano de “Barry” volta com menos temor de assumir a sua verdadeira natureza, encontrando espaço assim para construir um andamento mais harmônico e equilibrado entre todas as suas personagens e instâncias temáticas. Mais do que isso, o que mais chama a atenção é o reconhecimento de suas próprias complexidades, que retiram as máscaras proporcionadas pelo campo metalinguístico da atuação para emplacar em uma viciante e narcísica jornada de auto destruição cujo protagonista se torna cada vez mais refém de sua própria natureza.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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