Terceiro documentário brasileiro dirigido por mulheres sobre a deposição da Presidenta Dilma foca em sua intimidade diária e revela a outra face de uma personagem polêmica da história política brasileira.
Três documentários brasileiros recentes, todos dirigidos por mulheres, retratam os bastidores de uma das fases mais conturbadas de nossa Sexta República: a deposição da Presidenta Dilma Vana Rousseff, primeira e até hoje única mulher a ocupar tal cargo na História brasileira. Agora com “Alvorada“, de Anna Muylaert (“Que Horas ela Volta?“) e Lô Politi (“Jonas“), a trinca para entender os anos recentes e a escalada de um processo que hoje ameaça o mais longo período democrático do Brasil está completa.
No primeiro destes filmes a ser lançado, “O Processo“, de 2018, a diretora Maria Augusta Ramos faz um recorte que é marca de sua filmografia e foca os aspectos jurídicos do processo de impeachment, acompanhando as articulações da base aliada de Dilma e de seus advogados na tentativa de frear o trator revanchista da oposição derrotada nas urnas que, finalmente em 2016, deporia Dilma por conta de um crime de responsabilidade hoje bastante questionável. Em 2019, a diretora Petra Costa lançou pela Netflix “Democracia em Vertigem“, que narra os acontecimentos políticos do país, o aumento da polarização nas ruas e a conturbação social através das imagens veiculadas pela mídia, mesclando-as à uma reflexão subjetiva e a suas referências familiares, num estilo que também é marca de sua filmografia e que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Documentário.
Em 2020 seria lançado o terceiro desses filmes, foco dessa crítica, mas a pandemia fez com que ele fosse adiado para 2021, sendo lançado de forma online no festival É Tudo Verdade! “Alvorada” foi gravado pelas diretoras entre julho e setembro de 2016, período de limbo do processo de impeachment contra Dilma, que destituiu a Presidenta de seus poderes de forma temporária, inicialmente por 90 dias, até que o processo fosse finalmente votado pelo Congresso, depondo-a em definitivo. Diferente dos dois outros filmes, aqui já não há mais quase nada que Dilma ou seu séquito de aliados pudessem fazer, senão indignar-se e relegar ao tempo o julgamento moral sobre esse período.
Dilma, como ela mesma descreve a um jornalista à certa altura do doc., é posta numa posição de Cinderela encastelada. Com uma erudição impressionante, que a mídia poucas vezes destacou, Dilma aprofunda a referência até a origem etimológica do nome, lembrando que Cinderela significa “aquela entre as cinzas” (do francês cendrillhon). A referência trágica, contudo, não dizia respeito apenas à sua condição de alheamento do poder, mas a de toda a República brasileira, que reduzia às cinzas a estabilidade política duramente conquistada pela Constituição de 1988 e permitia a ascensão dos ultraconservadores ao poder. O título “Alvorada”, assim, refere-se tanto ao palácio modernista de Oscar Niemeyer que a Presidenta tinha como residência oficial, como também ao surgimento de um novo Brasil que surgia no horizonte ainda sem contornos muito claros àquela época, mas que hoje conhecemos bem.
Com uma circulação privilegiada pelo Palácio – não sem algumas broncas sem cerimônias da Presidenta, que expulsava a equipe quando as conversas atingiam pontos mais delicados -, as diretoras registraram Dilma junto a seu entourage, quase todos homens, além de encontros com apoiadores políticos, como o ex-Presidente Lula; personalidades, como o cantor Chico Buarque; coletivos de mulheres e movimentos sociais e um sem número de jornalistas nacionais e estrangeiros. Num dos momentos mais emotivos, Dilma se despede do staff do Palácio, antes de partir em definitivo.
Talvez o diferencial da obra de Muylaert e Politi seja humanizar Dilma como os outros docs, mais atentos à escala macro dos acontecimentos, não conseguiram fazer. Nas conversas com a diretora, Dilma mostra um lado que a imprensa, por omissão ou intencionalmente, não deixava transparecer: uma mulher forte como rocha, mas sensível e brincalhona com os que lhe agradavam. Dilma chega mesmo a caçoar de seu retrato pintado pela mídia, àquela altura já quase totalmente cooptada pela narrativa do impeachment: “Me chamam de louca, descontrolada; depois, de dura e insensível. Decidam-se!”.
A personalidade de Dilma se destaca no filme, trazendo uma outra leitura sobre uma figura tão vilipendiada, que até hoje divide opiniões apaixonadas pelo país, mas que certamente ficará marcada como uma das mais importantes de nossa História recente. Num dos momentos mais francos da conversa, Dilma explica como e porquê não se abate diante de tamanha perseguição e injustiça, lembra seus tempos de prisão e tortura pela ditadura militar, o câncer que enfrentou com sucesso e explica, da maneira clara e direta que lhe são características, que tal como fato biológico, não verga frente às dificuldades em seu caminho, nunca vergou, nem vergará. Confiante no julgamento da História, Dilma é deposta com a serenidade dos valentes, deixando como epíteto uma previsão de futuro: “Existem dois tempos: o presente, do calor dos acontecimentos, e o futuro, da justiça”.