Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 27 de fevereiro de 2021

Eu Me Importo (Netflix, 2020): a encenação vilanizada do sonho norte-americano

Misturando drama, suspense e pitadas de humor sarcástico, filme ataca os mitos do sonho norte-americano em múltiplos aspectos.

Provavelmente, “Eu Me Importo” pode remeter a “Garota Exemplar” e não apenas por conta da escalação de Rosamund Pike para um papel semelhante a Amy do projeto de David Fincher. Em ambos os filmes, a questão das aparências é colocada como uma questão dramática, consideradas as particularidades de cada narrativa. No trabalho de Fincher, ela se relaciona às pressões sociais por algum estereótipo; já na produção de Jonathan Blakeson (“A 5ª Onda“), ela se materializa dentro de várias formas de encenação necessárias para a concretização do sonho norte-americano.

Quem mais encena ser algo que não é para a sociedade é Marla Grayson (Pike). Ela é uma renomada guardiã legal que sempre atende pessoas ricas e idosas por considerá-las vítimas perfeitas para seus golpes. Ao buscar mais um alvo que possa lhe fornecer mais dinheiro e bens, interna numa clínica Jennifer Peterson (Dianne Wiest), uma senhora idosa que guarda segredos perigosos. A partir daí, precisará de toda sua astúcia para enfrentar criminosos e continuar viva.

A protagonista pode lembrar a personagem de “Garota Exemplar“, mas o roteiro de J. Blakeson e a atuação de Rosamund Pike encontram maneiras de evitar eventuais repetições. Marla é um símbolo ácido e provocador para a falsa imagem de um empreendedor que prospera na sociedade estadunidense por meio da disciplina do trabalho e da meritocracia: ela é fria, ambiciosa, manipuladora, agressiva e amoral, o que contraria a aparência de cuidadora altruísta de idosos com saúde comprometida. Mesmo que o discurso da narração em voice over na abertura não seja original, é capaz de sintetizar a ferocidade do capitalismo contemporâneo e preparar as múltiplas camadas da personagem. Além desse recurso, é interessante perceber como a presença de Marla no tribunal representa seus métodos, o confronto com o filho de uma de suas “clientes” revela sua postura contundente e a ida a um hospital se torna a caça por novas vítimas na recepção.

O impacto da encenação no primeiro ato se intensifica com o modo como a narrativa se define como um filme de golpe. As ações se assemelham à execução de um plano complexo como em “Onze Homens e Um Segredo“, algo que se evidencia na internação compulsória de Jennifer Peterson exibida através de uma montagem paralela com passagens em slow motion característica do subgênero. Já a construção estética busca estímulos conflitantes ao tipo de trama, por combinar outros gêneros (drama, mistério e comédia sarcástica), satirizar o alcance do poder de Marla para se apropriar de bens alheios (a empresa montada para “cuidar” dos idosos desamparados) e impregnar cenas com cores vibrantes, embora certos cenários sejam banhados por um tom azul frio e melancólico (a paleta de cores sugere sensações confortáveis que não encontram paralelo no desenvolvimento da história).

Não cabe apenas à protagonista representar papéis públicos, pois outros personagens são apresentados ou se desenvolvem a partir de contrastes. A guardiã é introduzida através de um plano que lentamente revela seu rosto, conferindo a ela uma aura de mistério ameaçador que destoa de sua elegância e de seu discurso aparentemente protetor. Fran (Eiza González) possui diferentes imagens em relação a Marla, sendo ao mesmo tempo assistente, amante e cúmplice. Jennifer se mostra inicialmente uma senhora independente que se sustenta por si só dentro de um modo de vida comum e pacífico, porém demonstra ser uma pessoa hostil e ameaçadora quando confronta Marla. E Roman Lunyov (Peter Dinklage) contrasta suas atitudes violentas com seu gosto por doces, inclusive por ser apresentado numa loja escolhendo o que comer.

Com o avanço da narrativa, o filme de golpe se transforma numa história de crime urbano, também encenado de maneira particular. Quando os caminhos de Marla cruzam com os de Jennifer, ela se vê ameaçada por Roman e os dois se enfrentam como duas figuras dispostas a fazer qualquer coisa para atingir seus objetivos – na realidade, eles são vilões em um duelo crescente, que impossibilitam a empatia do público e impõem o desafio de acompanhar uma narrativa sem personagens pelos quais torcer. Assim, o diretor descreve sua concepção do sonho norte-americano sem mocinhos e mocinhas, pois em seus argumentos que nem acreditaria na meritocracia do trabalho pessoal não passaria de um vilão – nesse sentido, a representação crítica de instituições e figuras de autoridade reforça essa percepção, principalmente ao mostrar a corrupção de uma médica e de um diretor de asilo.

Existe também um subtexto relacionado às questões de gênero que deixa ainda mais significativa a encenação crítica do sonho norte-americano. As personagens femininas têm um peso dramático maior que as figuras masculinas, já que os homens são superados e/ou manipulados por Marla (o filho de uma senhora desbancado no tribunal, o juiz influenciado a sempre dar ganho de causa para a protagonista e advogado derrotado nas tentativas de intimidar a guardiã legal). Além disso, o romance entre Marla e Fran é tratado com grande naturalidade, portanto sem colocar conflitos por conta da orientação sexual. Na verdade, os conflitos estão ligados à necessidade de as mulheres enfrentarem o machismo, como se vê nos momentos em que Marla confronta dois personagens masculinos que tentam diminuí-la por ser mulher e demonstra não ser inferior nem vulnerável.

À medida que o enfrentamento entre os antagonistas se aproxima do clímax, a união feminina se acentua na luta contra os criminosos masculinos – com isso, a idealização do mito norte-americano é enfraquecido dessa vez devido à exposição das diferenças de gênero. Entretanto, por mais que planos mirabolantes sejam feitos por cada um dos lados para saírem vitoriosos, a resolução surpreende por seguir outra rota ainda que seja coerente: alianças inesperadas podem ser formadas e antigas rivalidades podem culminar na conversão de relações pessoais em produtos lucrativos. A partir daí, o sonho norte-americano revela sua verdadeira natureza de farsa sem heróis ou oportunidades iguais, manipulação encenada dos fatos e de uma essência cruel simbolizada no sangue que escorre no plano final.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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