Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Berlin Alexanderplatz (2020): espetáculo superficial

Apesar de apresentar ótimas atuações e uma fotografia vibrante, o filme é uma atualização superficial do poderoso livro que o inspirou.

Reconhecido por muitos como um monumental clássico literário, “Berlin Alexanderplatz” sempre foi um relevante drama que se aprofunda em importantes questões da sociedade alemã. Escrito por Alfred Döblin – polonês que deixou uma forte marca cultural em Berlim -, o livro recebeu diferentes adaptações ao longo de sua trajetória. Tais versões buscaram manter a essência expressionista do original, publicado no sombrio período entre guerras,  e entre as quais se destaca à aclamada versão em minissérie dirigida por Rainer Werner Fassbinder. Imortalizado como uma narrativa de teor atemporal, recebe uma nova roupagem nas mãos do cineasta Burhan Qurbani, diretor alemão que se inspira na importante questão dos refugiados para atualizar o importante discurso do material fonte.

Nascido na Guiné-Bissau, o corajoso Francis (Welket Bungué) tenta estabelecer uma vida digna no coração da selvagem capital da Alemanha. Perseguido por assustadoras memórias do passado e forçado a lidar com opressores preconceitos, ele trabalha sob condições precárias e sofre para conquistar a sua merecida cidadania alemã. Tudo muda, entretanto, quando ele conhece o misterioso Reinhold (Albrecht Schuch), um traficante que lhe oferece abrigo e lhe apresenta o mundo do crime como uma plataforma de ascensão pessoal. Trazendo três longas horas de duração, o épico tenta se aprofundar na complexa psique de seu protagonista e entregar uma intrigante jornada sobre a transformação da natureza humana. Apesar disso, falha ao se dividir entre abstrações insuficientemente inseridas e escolhas de roteiro que pendem ao familiar.

Descendendo de uma família afegã, seria injusto dizer que Qurbani não reconhece a força do conto que possui em suas mãos. Ciente desse potencial e, principalmente, das diferentes ferramentas fornecidas pelo cinema, consegue apresentar um agradável espetáculo visual que envolve, pelo menos no início da projeção, o espectador, convidando-o a conhecer o submundo de Berlim a partir da gradativa degradação de sua personagem central. Por conta disso, estabelece uma cidade que harmoniza muito bem a sua vivacidade e a sua estagnação, combinação que culmina em festas e eventos enervantes encenados com as vibrantes cores de Yoshi Heimrath: cinzentas nas áreas externas, porém coloridas nesses interiores artificiais, refletem o espírito de um homem dividido entre sua bondade interna e os supostos benefícios de seu declínio moral.

Indo além, esse refinamento estético também se faz presente nas sequências mais simbólicas, passagens que incorporam um caráter metafórico maior para suscitar diferentes reflexões. São interessantes, dessa forma, os paralelos traçados entre um animal acorrentado, guiado e com um destino definido pelos demais, e a trajetória do próprio protagonista, uma figura constantemente presa entre a brutalidade exigida pelo meio ao seu redor e as conexões que estabelece com aqueles que realmente o amam – conforme bem entrega o dedicado Welket Bungué. Contudo, mal distribuídas ao longo da produção, tais presenças subjetivas até conseguem criar um aspecto teatral que agrega certa identidade à obra, mas geram efeitos leves por serem atropeladas pela tradicional linearidade com a qual dividem a tela. Não suficiente, revelam também uma certa insegurança por parte do projeto, o que demonstra a incapacidade de verdadeiramente abraçar essa esfera lúdica que tanto poderia engrandecê-lo.

Sendo assim, esses segmentos servem principalmente para a extensão de uma narrativa já bastante cansativa, resultando em um ritmo atrapalhado e que pouco compensa o espectador. Por um lado, é necessário valorizar a relevância que a jornada proposta possui, mostrando a lenta corrupção de um homem que, incapaz de ser aceito em algum lugar, começa a flertar com o inaceitável. Por outro, a repetição é muitas vezes empregada na construção dessa trajetória – reciclando situações que apenas atrasam um desenvolvimento que poderia ser mais dinâmico – e o próprio desenvolvimento inutiliza certas personagens em prol de outras. Apesar de ser inegável que no cinema nem todos em tela recebam o mesmo tratamento, tal fenômeno neste caso se torna especialmente complexo ao se aplicar fortemente às figuras femininas.

Embora sejam um reflexo de uma dura realidade – e que necessariamente deve ser denunciada -, as mulheres presentes no filme estão todas sujeitas à sexualização – única representação feita pela narrativa em relação ao feminino – e não recebem, tal como o protagonista, margens para transformação. Elas são ironicamente esquecidas em um longa que, passado nos dias atuais, tenta reinventar a sua inspiração publicada há quase cem anos. Logo, servem unicamente como artifícios para a vida de Francis, sendo Mieze (Jella Haase), o maior exemplo dessa infelicidade. Ela é desperdiçada e tem seu espaço ofuscado pelo antagonista da trama, figura que recebe um tempo de tela desproporcional à sua complexidade, resumido a maniqueísmos e meras ilustrações de maldade.

Por conta disso, “Berlin Alexanderspatz” peca em renovar a essência do material original, investindo em uma experiência superficialmente inchada. Esteticamente perfeito e dono de um protagonista até interessante, o filme apresenta boas atuações e tem consciência da importância do discurso que transmite. Constrói aos trancos e barrancos, a trajetória de um homem marginalizado cujo maior desejo é alcançar a dignidade. Prioriza o primor visual, mas é incapaz de equilibrar seus momentos mais lúdicos à forma narrativa clássica. Assim, a produção não passa de uma tentativa vazia de abordar relevantes tensões sociais, apresentando variadas personagens artificias e jamais fazendo jus ao que Francis realmente merecia.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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