Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Swallow (2019): sobre controle dos corpos femininos

O longa de Carlo Mirabella-Davis é um thriller psicológico que apresenta um transtorno pouco explorado no cinema para debater sobre consequências da opressão e controle dos corpos femininos.

“Swallow” abre com uma sequência intercalando o abate de um cordeiro, que termina sendo engolido em um jantar, com uma dona de casa executando afazeres domésticos minuciosamente. O filme de Carlo Mirabella-Davis constrói uma aura tensa ao contar a história de uma mulher cujo sorriso plástico te deixará ansioso. Contudo, esse thriller psicológico poderia ser sobre você, ou sua mãe, ou sua vizinha.

Hunter (Haley Bennett) e seu marido (Austin Stowell) parecem ser o casal ideal. Rico e bonito, Richie sabe dizer as palavras certas. Hunter é a esposa perfeita, dedicada integralmente ao lar e ao esposo. Os sogros dão apoio incondicional, provendo uma casa imensa e moderna, preocupados com a saúde física e mental da esposa que acabara de engravidar. Tudo isso poderia ser a história de uma família que arranca suspiros com belas fotos no Instagram. No entanto, como espectadores, somos convidados a assistir quais são as verdadeiras dinâmicas desse grupo.

A verdade é que Hunter não importa a ninguém. É tratada com indiferença por todos os lados, quando deseja no mínimo ser reconhecida pelo seu empenho. A protagonista em nenhum momento tem oportunidade de expressar suas vontades. O silenciamento é constante até mesmo sobre tópicos que a atravessam, como querer ou não seguir adiante com a gravidez. Tudo porque ela é apenas um veículo que irá conceber o herdeiro da família.

A personagem desenvolve alotriofagia, um transtorno que se caracteriza pela ingestão de objetos não-alimentares. Porém, a trama não é sobre isto, visto que poderia ser substituído por outros tipos de comportamento, servindo como uma alegoria à necessidade de se sentir no controle e preencher vazios. É importante que essa mensagem seja captada pelo espectador ao se deparar com revelações do enredo e a escolha da resolução final, pois o cerne da história não é o transtorno em si ou até mesmo a mera exploração de uma relação abusiva. A veia principal deste enredo – no que é possível definir sem esbarrar em spoilers – é sobre o controle dos corpos femininos.

A protagonista, buscando compreender o seu lugar no mundo, vive uma jornada de emancipação. A sagaz utilização de duas outras personagens femininas que interagem com Hunter ocupando papéis matriarcais é o que apoia essa interpretação, sustentada pelo subtexto de seus diálogos que reforçam um círculo vicioso a ser quebrado no último ato.

A cinematografia colabora para a compreensão dos diversos sentimentos que atravessam a protagonista. Planos abertos que dão dimensão ao espaço amplo da casa em contraste com a mulher exprimem solidão. Planos de detalhe exploram formas e texturas simbolizando o desejo de Hunter pelas sensações que os objetos podem proporcionar.

Se cabe apontar um possível escorrego da obra é que construção da narrativa pode levar assuntos periféricos e consequentes a serem tratados como centrais e causais. Isso dificulta a entrega da mensagem e pode fazer o espectador confundir o passado da protagonista e a resposta final como resoluções arbitrárias, quando na verdade são parte do escopo do filme.

O longa mostra acertadamente dinâmicas de abuso que existem no mundo real, embora aqui sejam descritas na tela de um filme regado a recursos cinematográficos para conferir sensações de horror a quem assiste. Elas são comumente mascaradas por sorrisos, por convenções e posições sociais, um sem número de fatores. Abordando assuntos sérios sem excessos, nem diminuindo a complexidade que esses temas carregam, a obra deixa uma cauda que aguça a reflexão do espectador sobre assuntos espinhosos que estão ao nosso redor em todas as camadas sociais, e que precisam ser debatidos, embora muitos se recusem.

Tayana Teister
@tayteister

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