Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 20 de maio de 2020

Arremesso Final (Netflix, 2020): retrato do épico

Com imagens inéditas de bastidores e depoimentos marcantes, o documentário rememora com sensibilidade e empolgação a trajetória vitoriosa e conturbada de Michael Jordan e o Chicago Bulls.

Fundado em 1961, o Chicago Bulls era somente mais um time na liga de basquete mais competitiva do mundo até 1984. Sem nenhum título, colecionava fracassos. Era saco de pancadas de outras equipes e também de comentaristas que já davam como certa a derrota independente do adversário. Ninguém no estado de Illinois queria saber dos Bulls. Mas naquele ano de 1984, um jovem da Carolina do Norte, selecionado numa terceira escolha do Draft (cerimônia na qual os times da NBA escolhem os melhores calouros para jogar), agitou Chicago. E mudou para sempre a história do time e do esporte. Sob o comando de uma força da natureza chamada Michael Jordan, que mais tarde viria a ser também uma força cultural, os Bulls conquistaram dois tricampeonatos (91-92-93 e 96-97-98) num espaço de oito anos, estabelecendo uma dinastia que, pavimentada por muito suor, frustração, conflitos e superação, é revisitada sob um olhar mais apurado através de entrevistas e filmagens exclusivas no inspirador e emocionante “Arremesso Final“.

Idealizada pela ESPN e distribuída no Brasil pela Netflix, esta série documental de 10 episódios tem como ponto de partida o final. Antes do início da temporada 97-98, uma equipe de filmagem foi autorizada pelo Chicago Bulls e pelas autoridades da NBA a registrar os bastidores daquele que viria a ser o último grande ato de uma franquia vitoriosa. Visando uma reformulação para a próxima temporada, a direção avisara o então técnico Phil Jackson que ele não teria o contrato renovado, o ala Scottie Pippen, em rota de colisão com o gerente geral Jerry Krause, era visto como moeda de troca, o bad boy Dennis Rodman continuava dando fortes dores de cabeça com seu comportamento peculiar e Michael Jordan – um pouco mais cansado, porém não menos genial -, via a responsabilidade de levar o time a um desfecho vitorioso, segundo ele, a qualquer custo.

Ciente de que grande parte da história está atualmente disponível na internet para quem quiser ver, a série documental acerta em cheio ao oferecer uma análise mais profunda sobre o processo que levou a equipe a ser respeitada e do qual Michael Jordan é o protagonista. Aqui, ele tem sua carreira passada a limpo num estudo de personagem habilmente conduzido por Jason Hehir, que a partir de vídeos e imagens fundamentados por uma série de entrevistas entrega ao espectador muito além do Jordan que se viu nas quadras. Com o auxílio de uma narrativa bem estruturada, em que cada episódio alterna com fluidez entre acontecimentos da derradeira temporada e passagens importantes da árdua jornada antes do sexto título, podemos conhecer mais da riquíssima personalidade do astro, suas motivações (algumas delas curiosas, como quando afirma que por inúmeras vezes criou ‘mentiras’ ou potencializou conflitos para se motivar), as ações que, segundo ex-colegas, ultrapassavam alguns limites e sua obsessão por competir e é claro, vencer.

Lesão grave, “Regras de Jordan” e outras polêmicas

Discutir abertamente as polêmicas que cercaram a carreira de Jordan é uma das qualidades deste documentário. Em 1985-86, por exemplo, o jovem astro do Chicago Bulls quebrou um osso do tornozelo após apenas três partidas da temporada regular. Ele passou por uma cirurgia que o afastou por 4 meses e o manteria afastado por mais tempo, se ele não tivesse arriscado tudo em treinos secretos para voltar antes do prazo e conseguir classificar o time para uma improvável série de playoffs contra o temido Boston Celtics. Outro fato curioso que é lembrado são as famosas “Regras de Jordan”, uma estratégia defensiva de basquete bem-sucedida empregada pelos bad boys do Detroit Pistons contra Michael Jordan, a fim de limitar sua eficácia no jogo. Isiah Thomas, peça principal dos Pistons em 1988, conta em “Arremesso Final” que a estratégia era “jogar duro, desafiá-lo fisicamente e variar suas defesas para tentar desequilibrá-lo“.

Co-produzido pela companhia de Jordan, o documentário poderia ser considerado chapa branca se não fosse a forma aberta com que discute temas mais espinhosos, como o vício em apostas. Em dado momento da narrativa, somos apresentados à obsessão do astro por competir, que adiante é acompanhada de apostas, que batiam a casa dos US$ 10 mil dólares nas brincadeiras entre os jogadores mais bem pagos da franquia. Tais apostas se estendiam ao golfe, passatempo favorito de Michael, e onde ele teve de lidar com um dos episódios que arranharam um pouco sua imagem e estremeceram sua relação com a imprensa. Jordan foi investigado por dar ao golfista James “Slim” Bouler (preso por diversos crimes, entre eles lavagem de dinheiro) um cheque administrativo de US$ 57.000 para cobrir as perdas de jogos de um fim de semana de golfe. Sua ida a um cassino de Atlantic City antes de uma partida decisiva contra o New York Knicks também gerou debates acerca do vício que, de acordo com ele, era apenas uma maneira de relaxar e não um vício, já que conseguiria parar quando quisesse.

Emoção à flor da pele com a perda do pai

Em meio a tantos lances magistrais, polêmica com as apostas, desavenças para com os companheiros de time e a mentalidade vencedora que o acompanha até hoje, o episódio que mais se destaca é sobre a morte precoce de James Jordan, pai de Michael. Incentivador, amigo e sempre presente nos jogos, James foi assassinado brutalmente meses depois do filho prodígio conquistar o inédito triplete. Na base de muita emoção, Michael e outros convidados relatam a dificuldade daquele período, que acarretou na sua primeira aposentadoria e a investida no baseball. Alguns meses depois de praticar o novo esporte, Michael anunciaria sua volta ao basquete e aos Bulls com a famosa “I’M BACK”. No complicado retorno, Jordan teve muita dificuldade em readaptar o corpo, com poucos jogos e uma derrota doída para o Orlando Magic do ex-colega Horace Grant. Isso reacendeu a chama de campeão e o fez voltar mais forte na temporada seguinte para recuperar o que lhe era de direito. O quarto campeonato foi vencido em pleno Dia dos Pais, sendo um desabafo para estremecer o coração.

Espaço para os companheiros de Bulls

Embora dedique-se a estudar a personalidade de Michael Jordan, “Arremesso Final” reconhece que um time não é campeão com apenas um jogador, ainda que este seja considerado por especialistas o melhor de todos os tempos. A narrativa abre espaço para as importantes participações de ex-colegas da franquia para que o público compreenda a necessidade do coletivo na busca do objetivo final. O ala Scottie Pippen, o bad boy Dennis Rodman e o técnico Phil Jackson (responsável pelo tema “The Last Dance“, que virou nome na série nos EUA), têm parte de suas jornadas dissecadas pelo documentário, revelando fragmentos curiosos da persona de cada um. O croata Toni Kukoc, que despontou jovem nas Olimpíadas em que os Estados Unidos contaram com o Dream Team, e o libanês Steve Kerr, cujo destino do pai é muito semelhante ao de James Jordan, são ex-jogadores que recebem destaque e têm sua parcela de contribuição assumida nos rumos da organização de Chicago e na vida de Michael Jordan.

Veredito

Montado à perfeição por Chad Beck, Devin Concannon, Abhay Sofsky e Ben Sozanski de maneira não-linear, porém ágil e de fácil entendimento, embalado por uma trilha sonora empolgante, narrado por imagens inéditas, e comentado por uma diversidade de pessoas que vão desde jornalistas, companheiros de equipe, funcionários, diretores, familiares e rivais, “Arremesso Final” é um retrato inspirador e comovente da longa e sublime peregrinação de Michael Jordan, de aspirante a jogador a símbolo máximo de uma era do basquete. Ele vai de atleta determinado à força cultural, estrelando filme (“Space Jam: O Jogo do Século”) e até ganhando a própria marca de tênis (o AirJordan está aí até hoje). Juntamente com outras peças fundamentais, que em sua individualidade souberam se encaixar e se entender, Michael Jordan transformou o Chicago Bulls numa franquia vitoriosa e fez do basquete um esporte amado e respeitado ao redor do globo. “Arremesso Final” é sobre vencer e vencer custe o que custar.

Renato Caliman
@renato_caliman

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