Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de maio de 2020

#RapaduraRecomenda – Testemunha de Acusação (1957): julgamento imersivo

Baseado no conto homônimo de Agatha Christie, o longa é um excelente e divertido exercício de condução do suspense que convida o espectador a desvendar a verdade ao lado de seu carismático protagonista.

Responsável por verdadeiros clássicos da literatura policial, a escritora Agatha Christie construia mistérios como ninguém. Autora de intrigantes tramas e personagens inesquecíveis – conquistas que não por acaso lhe garantiram a alcunha de Rainha do Crime-, ela sempre demonstrou invejáveis habilidades na área da escrita. Idealizadora de ambiciosas ideias, nem todas as suas realizações foram bem adaptadas para o cinema, obras que originaram longas incapazes de alcançar a grandiosidade presente no papel. Ao lado de bons cineastas, entretanto, o aclamado legado da romancista britânica também gerou verdadeiras pérolas da sétima arte, filmes entre os quais podemos destacar o excelente “Testemunha de Acusação“.

Dirigido pelo aclamado Billy Wilder – gênio por trás do brilhante “Crepúsculo dos Deuses” – e baseado no conto homônimo de Christie, o filme apresenta o caso de Leonard Vole (Tyrone Power), um homem humilde que é acusado pela morte da rica senhora Emily Jane French (Norma Varden). Tentando alavancar sua fracassada carreira como inventor e melhorar suas condições de vida ao lado da esposa Christine (Marlene Dietrich), ele se torna, por questões financeiras, o principal suspeito e decide recorrer ao aclamado advogado Wilfrid Roberts (Charles Laughton). Quando o renomado profissional convoca Christine como testemunha, todavia, uma série de segredos passam a aparecer. Tem-se assim um convite para um envolvente julgamento, experiência que se prova extremamente imersiva através do impressionante controle de seu diretor.

Com um roteiro assinado pelo próprio Wilder, o longa se inicia com um primeiro ato perfeitamente conduzido, transparecendo com clareza as características de seu protagonista e as estratégias que serão utilizadas durante toda a duração. Recém-saído de uma recuperação médica, Wilfrid é apresentado como uma figura carismática porém extremamente rabugenta, conquistando o público em poucos segundos a partir da divertida atuação de Charles Laughton. Vigiado pela cômica enfermeira Plimsoll (Elsa Lanchester), personagem que o impede de fumar e beber álcool, ele rapidamente se estabelece como o grande guia da produção, exibindo através dos atritos com a ajudante um perfil de alguém que jamais esconde suas segundas intenções. Embora trapaceie levemente para conseguir cigarros, por exemplo, o advogado não esconde os seus verdadeiros interesses e opiniões, colocando-se como a única figura em quem o espectador pode verdadeiramente confiar. Não suficiente, tendo como função defender aquilo que julga ser certo, logo exibe também uma certa ingenuidade, forçado a tentar decifrar motivações e personalidades que podem estar envolvidas em um complexo jogo de interesses. Justo e indeciso, o homem está assim no mesmo patamar do público que o acompanha, convocando o último para se sentar ao seu lado no magnético tribunal.

Uma vez igualada a plateia ao protagonista, entra em jogo a segunda estratégia fundamental: a construção da trama quase exclusivamente a partir de relatos. Sejam eles dramatizados – recurso predominante nos minutos iniciais, mas que dá lugar ao supressor ambiente jurídico logo em seguida – ou não, a escolha dos mesmos se mostra extremamente inteligente uma vez que permite ao espectador duvidar do que é exposto, desafiando-o a descobrir a verdade sobre o acontecido e amplificando a imersão da obra. Em meio às diferentes teorias entre as quais quem assiste se desdobra, seria injusto não reconhecer que a performance de Marlene Dietrich amplifica as dúvidas, confundindo ao mesclar com sucesso traços suspeitos e demonstrações de fragilidade. Vinda da Europa e trabalhando como atriz, sua personagem denuncia, além disso, pré-julgamentos muitas vezes formulados contra o feminino e o estrangeiro, atuando assim como uma inteligente ferramenta de Wilder em utilizar o preconceito de alguns – noção talvez mais marcante na época de seu lançamento, mas que infelizmente persiste até hoje – para confundi-los ainda mais.

Não bastassem os méritos já citados, a direção ainda se destaca pela forma como insere “desvios” na sessão jurídica, decisão que concede ao filme um ótimo ritmo. Bastante engraçados, tais dispersões não só divertem – o que por si só impede que a produção fique cansativa – como também aprofundam a figura central, reforçando sua determinação. É o caso, por exemplo, da divertida sequência na qual a enfermeira desvia a atenção de Wilfrid para alertá-lo sobre um de seus remédios, fazendo com que o advogado e a plateia se desliguem por alguns segundos de um importante depoimento. Sujeitos a fraquezas e distrações, é reforçado assim que não descobriremos o culpado com facilidade, induzidos a duvidar da capacidade do protagonista porém influenciados a acreditar em sua incrível perseverança – sendo um senhor que mesmo debilitado e sujeito a enganações jamais desiste. Por fim, é crucial apontar que o roteiro também se destaca por aliar perfeitamente o desenrolar da experiência em si com seu lado mais crítico, desenvolvendo um interessante diálogo entre a honestidade dos laços humanos e as diferentes bases – como a sedução, o dinheiro e o vício – que podem enfraquecê-los.

Fazendo jus à imperdível combinação de Agatha Christie e Billy Wilder, “Testemunha de Acusação” é um excelente exemplo de que a simplicidade pode dar luz a grandes realizações no cinema. Trazendo pouquíssimos cenários e sustentado basicamente pelas interações entre os bem interpretados personagens, o filme é um excelente exercício de condução do suspense que convida o espectador a assumir o desconfortável papel de juiz. Igualmente cômico e imersivo, o longa alerta o público sobre a necessidade de se atravessar as impressões iniciais que estabelecemos em relação aos outros e o desafia a enxergar com clareza dentro de um sedutor conflito entre interesses e honestidade. É assim um clássico inesquecível cujo desfecho é impossível de se prever.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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