Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 03 de maio de 2020

#RapaduraRecomenda – O Gigante de Ferro (1999): somos quem escolhemos ser

Animação sobre um visitante metálico do espaço e sua conexão com um garoto do interior dos EUA em plena Guerra Fria explora temas históricos e sociais da época ao mesmo tempo que entrega um belo conto sobre amizade e escolhas.

A safra de 1999 rendeu inúmeras excelentes obras advindas do cinema hollywoodiano. De “Beleza Americana” e “À Espera de um Milagre” a “Matrix” e “Clube da Luta”, a sétima arte foi usada de maneiras variadas para explorar diferentes aspectos do ser humano e da sociedade em filmes de alta qualidade. Com tantas obras fantásticas, algumas verdadeiras pérolas não foram captadas pelo radar do grande público e se tornaram injustos fracassos de bilheteria. Uma delas é “O Gigante de Ferro”.

Animação que marcou a estreia de Brad Bird (“Os Incríveis 2”) na direção de um longa-metragem, o filme é baseado no livro “The Iron Man”, do britânico Ted Hughes, publicado em 1968. O romance conta a história da chegada de um gigante homem de metal e sua amizade com um garoto que o leva a defender o mundo de um dragão espacial. O filme adapta alguns elementos, se passando durante a Guerra Fria na década de 1950 numa pequena cidade nos Estados Unidos. Na versão do cinema, o garoto Hogarth Hughes (Eli Marienthal) encontra um gigante de ferro que veio do espaço e tenta escondê-lo da mãe, Annie (Jennifer Aniston), contando com a ajuda do artista sucateiro Dean (Harry Connick Jr.) para escapar do irritante agente federal Kent (Christopher McDonald). E sim, o sobrenome do protagonista é uma homenagem ao autor do livro.

O fato mais curioso sobre este filme é que sua ideia nasceu como um musical produzido por ninguém mais, ninguém menos que Pete Townshend, da banda The Who, que havia composto um álbum intitulado “The Iron Man”, mas logo o foco foi mudado para a produção desta obra que mistura imagens geradas por computador com a tradicional animação 2D. O desafio de mesclar as duas técnicas de forma que pareçam indistintas visualmente pode ter sido grande, mas o resultado definitivamente compensou, com movimentações orgânicas que impressionam em suas interações.

O roteiro assinado por Bird e Tim McCanlies teve um toque pessoal do diretor, cuja irmã foi assassinada pelo marido. A tragédia levou o diretor a imaginar como seria uma arma que tivesse alma e não quisesse ser uma arma. Esse tema permeia a trama que, mesmo com apenas uma hora e vinte e seis minutos de duração, consegue entregar um material rico e belo, com uma homenagem a um certo alienígena famoso dos quadrinhos que não falha em atingir os corações dos fãs.

Bird já mostra aqui sua incrível competência em dar ritmo a uma história. Pode haver um ou outro ponto que não passa sob uma análise minuciosa, mas é procurar sarna para se coçar. O longa é organicamente fluido, com diálogos bem escritos e encaixados, gerando não só imersão na ambientação (que consegue entregar elementos narrativos intrigantes apenas com direção de arte), mas também conexão com o carinho entre o menino e o gigante. Bird entrega uma animação que faz o público esquecer que tudo ali foi desenhado de tão cativante e plausível que tudo parece ser.

Outro feito impressionante do roteiro é saber lidar com as subcamadas de seu pano de fundo para ter algo a dizer sobre a política da época, quando incontáveis obras de ficção científica tratavam do holocausto nuclear e invasores de Marte. São elementos como esse que mostram a riqueza do longa, que vai muito além de contar uma aventura entre um menino e seu amigo alienígena. Amigo este, aliás, que se prova um baita personagem. Adorável em sua inocência e ingenuidade quase infantil, vê-lo aprender a se comunicar e processar temas abstratos como definições de alma e morte é eficiente o bastante para nunca ficar sisudo demais e tratar as crianças espectadoras com o devido respeito que merecem. Assim como em “E.T. – O Extraterreste”, é inevitável torcer para que a dupla de amigos termine vencedora e feliz.

“O Gigante de Ferro” não teve a atenção merecida nas bilheterias. É uma pena que uma joia preciosa como essa tenha se perdido no meio de tantas outras no final do milênio. Uma animação muita acima da média que vai além de uma simples aventura e tem algo a dizer sobre o poder que temos sobre nossas escolhas.

Bruno Passos
@passosnerds

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