Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 30 de março de 2020

Star Trek: Picard (1ª Temporada): ensinando por meio de exemplos

Mesmo com o inchado número de personagens e uma trama que precisou ser acelerada em alguns momentos, a série consegue honrar a franquia, debatendo temas filosóficos e homenageando um de seus grandes capitães.

Em “Jornada nas Estrelas: Nêmesis”, lançado em 2002 quando a franquia ainda não tinha seu título internacionalizado para o original “Star Trek”, o comandante Data (Brent Spiner) se sacrificou para salvar seu capitão Jean-Luc Picard (Patrick Stewart). Tal fato tem grande peso nos acontecimento de “Star Trek: Picard”, que traz o famoso personagem de volta lidando com a aposentadoria autoimposta após uma atitude da Frota Estelar que ele considera criminosa.

Antes de mais nada, é importante deixar claro que não é preciso ser grande conhecedor da franquia e nem sequer ter visto o filme mencionado anteriormente para acompanhar a série, que faz um bom trabalho de recapitular eventos passados para que os do presente possam se desenrolar. Obviamente, quem já tem algum conhecimento deste lore vai encontrar boa quantidade de material para desfrutar desta obra com mais afinco.

A série abre com seu protagonista aposentado, cuidando de sua vinícola na França, onde vive tendo sonhos recorrentes com Data. Seu chamado para a aventura vem no formato de uma jovem (Isa Briones) que pede sua ajuda e ambos descobrem que ela possui uma forte ligação com seu antigo companheiro. Quando ambos descobrem que uma sociedade secreta de romulanos (que tem seu lore expandido com novos e interessantes elementos) está a procura da moça para assassiná-la, Picard busca não só salvá-la como também preservar o legado de seu amigo.

Na década de 2010, as séries entraram numa onda de terem temporadas com número reduzido de episódios. Até então, eram comum serem feitos cerca de vinte e cinco em cada, mas esta segue o padrão estabelecido e possui apenas dez. Em geral, essa mudança é bem-vinda, evitando barrigas narrativas e fillers, mas com o inchado número de novos personagens, esta característica jogou contra a qualidade da série.

Com alguns diálogos escandalosamente expositivos em alguns momentos e um grande time de personagens que precisam ser apresentados ao mesmo tempo que vários clássicos retornam, é nítida a sensação de que eventos precisaram ser apressados para que a história chegasse a seu fim. Com isso, o vulcano Elnor (Evan Evagora), por exemplo, tem zero peso na trama principal e parco desenvolvimento. Raffi (Michelle Hurd) e Rios (Santiago Cabrera) são cativantes e bem apresentados, mas o passado da primeira com Picard não é explorado o bastante para que ações presentes tenham o impacto necessário e a relação do segundo com a Dra. Jurati (Alison Pill) é tão repentina que não convence em momento algum. Entretanto, muito se salva pela alta competência dos atores, com Hurd transbordando energia em tela e Cabrera, cujo personagem criou vários hologramas com sua aparência, mas de personalidades distintas, exibindo seu variado leque de talentos.

O ritmo funciona melhor quando personagens antigos dão as caras. Sete de Nove (Jeri Ryan) está mais cascuda e experiente na sua vida como humana, que agora é mais longa do que seu passado como membro robótico dos borg. Riker (Jonathan Frakes) traz uma gostosa sensação de paz e conforto em sua presença e camaradagem e Hugh (Jonathan Del Arco) traz bela humanidade ao fazer uma das pontes para um dos grandes temas filosóficos discutidos pela franquia: inteligências artificiais sintéticas têm direitos e deveres como as orgânicas? Eles podem ser considerados indivíduos?

Esse debate foi apresentado com ênfase no episódio “The Measure of a Man” (“A Medida de um Homem”, em tradução livre) na série que apresentou Picard ao mundo, “Star Trek: The Next Generation”. Lá foi discutido se o comandante Data, sendo um androide, era propriedade da Frota Estelar ou se era um indivíduo com direito de escolha sobre seu destino. Tais ideias são o cerne desta nova série, que discorre sobre vidas sintéticas e seus papéis no universo.

Todo esta linha narrativa é a deixa para Patrick Stewart brilhar no papel que interpretou por tantos anos. Mais do que acostumado ao personagem, ele traz o peso da viver sabendo que não restam muitos anos de vida, ele não apenas repete suas performances, mas traz as consequências dos anos passados em suas decisões, seus olhares e suas posturas perante outros. Quando ele contracena com Brent Spiner, como nas sequências de sonhos, é um absoluto deleite.

O season finale eleva a qualidade da série, conseguindo homenagear a franquia e Picard, mostrando as lições que ambos têm a ensinar e aprender, além das belas mensagens que costumam deixar para o mundo, que são, na verdade, para o real. Esta série desafia a utopia da Federação dos Planetas Unidos, que, ainda composta de indivíduos falhos, cedeu ao medo do terrorismo e, assim, foi desafiada, levantando questões que podem ser espelhadas nos debates sobre posicionamentos de líderes mundiais do início do século XXI.

“Star Trek: Picard” não tem uma narrativa fluída, mas acerta no que se propõe. Ao usar a ficção científica como pano de fundo para convidar o espectador a filosofar sobre questões pertinentes à raça humana, a série honra a franquia ao mesmo tempo que dignifica um dos maiores personagens (e atores) da cultura pop de todos os tempos.

Bruno Passos
@passosnerds

Compartilhe