Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 22 de março de 2020

O Conto da Princesa Kaguya (2013): beleza brilhante

Com uma animação de encher os olhos, Isao Takahata cria uma verdadeira obra-prima: baseia-se nas artes e histórias tradicionais japonesas, mas traz uma mensagem que transcende qualquer cultura.

“O Conto da Princesa Kaguya” é o último filme do cocriador do Studio Ghibli, Isao Takahata, falecido em 2018. Com a tarefa de esticar um pequeno conto literário em um longa de mais de duas horas, o cineasta deu vida a uma das animações mais bonitas do cinema. Nela a quebra do excesso de realismo dá lugar à pura expressão artística, transportando o público a direções que o 3D jamais conseguiria.

A obra é uma adaptação de “O Conto do Cortador de Bambu”, a história mais antiga do folclore japonês que explica uma das possíveis origens do nome do Monte Fuji. É uma fábula muito popular no Japão, já adaptada de várias formas e lembrada em diversas produções, como em “Naruto Shippuden” e “Sailor Moon S”. A versão de Takahata é bem fiel ao original, contando a trajetória de um humilde camponês (Takeo Chii), que certo dia encontra em um broto de bambu a miniatura de uma princesa. Ele a entrega à sua esposa (Nobuko Miyamoto), e o ser se transforma em um bebê. A mulher misteriosamente cria leite para alimentá-lo e este começa a crescer mais rápido que o normal, conforme a natureza se movimenta com a chegada da primavera. Conhecida pelos outros jovens dos arredores como Takenoko (pequeno bambu), devido à velocidade de seu crescimento, a menina demonstra uma personalidade pura e aventureira. Takenoko (Mirai Uchida) cria forte conexão com as outras crianças e com a natureza enquanto rapidamente se torna uma adolescente. Após encontrar ouro e vestes de tecidos nobres dentro de bambus, o pai adotivo da garota se convence que é o desejo dos Céus que sua filha seja criada na capital como uma princesa. Parte, então, a contragosto e é educada nas tradições aristocráticas para tentar domar seu espírito livre. Após sua menarca, recebe o nome de Kaguya (Aki Asakura), devido à sua impressionante beleza como uma “luz brilhante”.

Diferente do material original, a narrativa cinematográfica traz mais dimensões à personagem principal, desenvolvendo as passagens de sua infância e permitindo que a audiência possa entender melhor sua essência. Pelos olhos do diretor, o conto ganha um profundo significado, pois discute de uma forma bastante orgânica os valores da humanidade, atribuindo às coisas simples o sentido da verdadeira felicidade. A protagonista ama cada pequena parte da natureza, enquanto seu pai acredita que seu bem-estar está em riquezas e status. Em uma sociedade onde poucos tem muito e muitos tem pouco, os moradores da vila que vivem diante da miséria são aqueles capazes de obter uma alegria genuína, ao passo que as formalidades e as tradições vindas das altas posições sociais são enclausuramento, máscaras e mentiras. Por acompanharmos uma princesa, temos o recorte de como os costumes são especialmente violentos com as mulheres.

Mais do que o enredo, tão antigo e tradicional, o verdadeiro brilho está em na animação inigualável. Num misto entre o realismo e o abstrato, carvão e aquarela em folha branca trazem a ancestralidade das pinturas nipônicas, com muito minimalismo e precisão nos detalhes. As cores comunicam o sentido e o tom das cenas. Kaguya é a única personagem com a pele alva como a Lua, destacando sua pureza, divindade, nobreza – comumente observadas nos padrões culturais daquele país – e até mesmo suas raízes. As ilustrações são propositalmente cruas para melhor captar a emoção que o artista traduz para os personagens, efeito notável principalmente em uma cena magistral na qual a protagonista entra em catarse se despindo de suas vestes coloridas, que simbolizam tudo o que a oprime, ao mesmo tempo corre pela noite. O que antes era um colorido gracioso dá lugar ao carvão expresso em linhas grossas em cenas quase sem cor.

Embora carregue tanta profundidade, a história é contada de forma simples, o que abre as interpretações para cada espectador. A inserção de Sutemaru (Kengo Kora) como interesse amoroso é dispensável e pouco desenvolvida, mas rende um dos momentos mais bonitos e singelos do longa. “O Conto da Princesa Kaguya” é um lindo estudo de personagem que eterniza uma história popular do povo japonês, quebrando paradigmas se comparada às adaptações folclóricas das princesas da Disney. Para quem não está habituado ao estilo, pode ser que sinta estranheza diante do ritmo da animação, no entanto, pondo as diferenças culturais de lado, Kaguya é uma menina como qualquer outra e seus anseios são capazes de transcender quaisquer costumes. Colocar a felicidade acima de qualquer ambição é uma mensagem com a qual qualquer pessoa consegue se conectar.

Tayana Teister
@tayteister

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