Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O Homem Invisível (2020): o terror de relacionamentos abusivos

Depois de um começo fraco, a Universal mostrou que entendeu a importância de atualizar seus monstros para o século 21, e entrega um filme que concilia muito bem a essência da obra de H.G. Wells, com o terror de relacionamentos abusivos.

Adaptar uma história para uma mídia diferente da original é um desafio por si. É necessário reconhecer o que faz parte daquele formato, o que pode ser adicionado e o que deve ser deixado de lado, sempre pensando em manter o que é essencial da obra original. Quando há um distanciamento de mais de um século entre as duas, há ainda a necessidade de conseguir atualizar o texto, para que o resultado não seja uma adaptação datada ou anacrônica. “O Homem Invisível” é um exemplo interessante — e quase didático — de como não cair nesse erro, tornando a trama mais relevante.

Dirigido e roteirizado por Leigh Whannell (“Upgrade: Atualização”), o filme é uma releitura do livro escrito por H.G. Wells. A história acompanha Cecilia Kass (Elisabeth Moss), uma mulher que, após fugir de um relacionamento abusivo, recebe a notícia do suicídio de seu ex-marido, Adrian Griffin (Oliver Jackson-Cohen). Ela tenta reconstruir sua vida, no entanto, seu senso de realidade é questionado quando ela começa a suspeitar que seu falecido amante não está realmente morto.

Apostando em contar uma história sobre relacionamento abusivo, Whannell tem em mãos o ingrediente fundamental para que a sua adaptação não nasça datada. E Elisabeth Moss consegue demonstrar o terror e o trauma que uma pessoa na situação de Cecilia passa. A dificuldade para sair de casa e a insegurança para fazer atividades simples, como buscar a correspondência, dialogam diretamente com o medo que ela tem de voltar a viver com uma pessoa que fez tanto mal para ela. Mesmo antes de Adrian retornar invisível, ele já a está perseguindo, algo que a história consegue narrar muito bem e em uma ponte tão próxima com a realidade.

Tudo isso é construído para que quando Adrian comece a perseguir Cecilia, já tenha sido construída uma imagem de alguém (ela, no caso) que não está totalmente sã. Whannell consegue demonstrar com inteligência o processo de deslegitimação da vítima, que apesar de ter todos os motivos para ser ouvida, é tratada como insana. As consequências que ela, e as pessoas que estão próximas a ela sofrem, é por ela ser ignorada e tratada como alguém que enlouqueceu, um terror real e que foi adicionado de maneira inteligente à trama.

E, apesar de a montagem não saber para que lado ir em determinado momento, “O Homem Invisível” se beneficia de uma fotografia inteligente para desenvolver a história. Isso porque o vilão do filme não pode ser visto, mesmo em ambientes bem iluminados. Isso afasta a necessidade de depender de cantos escuros para esconder uma ameaça, ou do jumpscare gratuito, quando uma sala é iluminada repentinamente. Aqui, os cantos escuros servem para assustar Cecilia, que se sente ameaçada por estar sendo vigiada, ajudando a elevar a tensão do filme.

Whannell ainda consegue se beneficiar de sua experiência em filmes sobrenaturais, brincando com o formato, mas sem nunca sugerir que a ameaça possa ser sobrenatural. Ele opta pelo poder da sugestão — que cria “fantasmas” —, para que Cecilia seja vista em uma situação de vulnerabilidade. O resultado funciona, principalmente nas cenas que acontecem na casa de James (Aldis Hodge), com a ameaça alternando entre a sugestão e o perigo real, assim como os cenários, que por vezes são acolhedores, mas se tornam facilmente aterrorizantes, com uma simples mudança de ângulo.

E se “O Homem Invisível” é capaz de transmitir um sentimento de desconforto do início ao fim, Elisabeth Moss é a principal responsável por tal feito. A atriz se mostra confortável com o papel, e consegue suportar o filme nas costas — o filme é dela por decisão do roteiro e a direção trabalha bem a história desta maneira —, sendo o ponto de conexão com todos os subplots construídos. Tudo parte dela, para que então possa ser mais bem desenvolvido, e retornar à personagem como uma ameaça, seja o ex abusivo, do advogado e irmão de Adrian, Tom (Michael Dorman), ou se ver afastadas das pessoas que decidiram protegê-la. O filme não hesita em depender da atriz.

Saber que as consequências da violência doméstica são muito mais ameaçadoras do que um monstro, é a prova que Whannell entendeu como fazer uma boa atualização de um clássico da literatura. Sem abrir espaço para outro ponto de vista que não seja o da protagonista (e da vítima), o diretor conseguiu criar um filme que funciona pela tensão para o público geral, mas que pode ter um significado mais intenso para quem já passou por relacionamentos abusivos — vítimas de violência doméstica mais agressiva podem até se sentir desconfortáveis em algumas cenas. Em tempos de #MeToo, “O Homem Invisível” é uma atualização cruel, embora real e necessária.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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