Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 22 de fevereiro de 2020

Servant (Apple TV+, 1ª Temporada): mistério oscilante

A primeira temporada da série apresenta uma abertura e um desfecho atraentes para quem procura histórias de suspense, mas deixa a desejar em como liga esses dois extremos.

A chegada de novos serviços de streaming sempre culmina no mesmo desafio: atrair um público habituado a assistir ao catálogo da Netflix. A plataforma da Apple lida com a questão recorrendo à estratégia de reunir nomes de peso, como é o caso do envolvimento de M. Night Shyamalan na produção e direção pontual da série “Servant“. A princípio, a presença do diretor e roteirista pode sugerir um mistério na linha de “O Sexto Sentido” e “Corpo Fechado“, porém o drama da proposta possui um impacto maior do que o suspense trabalhado com o freio de mão puxado.

Espera-se um mistério devido à premissa seguir personagens que ocultam muito sobre si mesmos. O casal Dorothy e Sean Turner contratam a jovem babá Leanne para cuidar do bebê Jericho, já que o marido é um consultor gastronômico ocupado e a esposa trabalha fora de casa como jornalista. Entretanto, com o passar do tempo, o que parece ser uma situação casual logo se revela uma trama de rumos incertos e inesperados, iniciados pelo fato de que o recém-nascido morreu precocemente e Jericho, na realidade, é um boneco colocado ali para amenizar a depressão de Dorothy.

Através da sinopse, percebe-se que o destaque da narrativa é a interação básica entre o casal e a babá, principalmente as duas mulheres. A partir daí, o roteiro trabalha o drama evocado pelo peso daquilo que não se sabe sobre tais figuras: a mãe bloqueou de si mesma a perda do filho durante o colapso após a tragédia e continua acreditando que o boneco usado como terapia tem vida; já Leanne esconde dos patrões suas origens, informações pessoais, traços da personalidade e reais intenções de trabalhar ali. Seguindo a mesma ideia de impactar o espectador por reviravoltas que quebram pré-julgamentos dos personagens estão as performances das atrizes: Lauren Ambrose encarna Dorothy como alguém aparentemente expansiva e extrovertida que, gradualmente, revela cicatrizes de traumas reprimidos e sofrimentos prestes a explodir; e Nell Tiger Free vive a babá como uma jovem tímida e dedicada, que tem segredos enigmáticos, variações emocionais imprevisíveis e um grande fervor religioso.

Dentro dessa perspectiva dramática, enquanto as mulheres apresentam maior protagonismo, os homens reagem aos fatos incomuns que avançam pela série. Tony Kebbell interpreta Sean, dividido entre a ocupação gastronômica e os cuidados psicológicos da esposa se esforçando para que não tenha um colapso se lembrando da morte da criança; Rupert Grint encarna Julian, irmão de Dorothy, como o parente mais presente na ajuda ao casal, mesmo lhe faltando delicadeza em muitos momentos. Eles sofrem as consequências da entrada do sobrenatural que se abate sobre a residência em um dos primeiros plot twists: o marido vivencia fisicamente o perigo com marcas em diferentes partes do corpo e o irmão sente emocionalmente a dificuldade de encontrar explicações e soluções racionais para os enigmas em torno de Jericho e Leanne.

O mistério por trás do desconhecimento do que está acontecendo envolve também a locação principal: a casa dos Turner. Por abrigar a maior parte da ação, o cenário sugere o suspense que afeta os personagens através das características espaciais, destacadas especialmente no primeiro episódio dirigido por Shyamalan – ele cria uma áurea aterrorizante com um plano geral sobre uma chuva contínua à noite, a escuridão dos cômodos, uma trilha sonora dissonante de sons graves e agudos, sombras ocultadoras de aparições sorrateiras e enquadramentos pouco naturais geradores de inquietação. Apesar da construção inicial, os demais diretores dos capítulos subsequentes não exploram o potencial da ambientação com criatividade e simplesmente tentam emular o estilo anterior, sem o mesmo impacto. Gradativamente, inclusive, o local perde parte de sua atmosfera e a filmagem reduz o uso de técnicas anteriormente usadas, mas travellings sutis ainda mantêm uma atmosfera misteriosa.

O que igualmente dificulta o desenvolvimento do suspense é a progressão do roteiro, que parte de uma ideia provocativa capaz de despertar o interesse, entretanto não faz jus ao início promissor em seus desdobramentos. O texto se arrasta num ritmo irregular que se alterna entre momentos dramáticos ou tensos e outros que não atingem o objetivo de choque planejado, por exemplo, o capítulo voltado para Julian se torna confuso por usar flashbacks que esclarecem muito pouco do conflito central. Além disso, há um esforço tão grande em levantar novas perguntas e mistérios que a produção tem poucas oportunidades de trabalhar as resoluções e adia tanto as respostas que cai em repetições das mesmas situações atípicas envolvendo Leanne.

Por outro lado, a narrativa retorna para níveis mais sólidos quando as abordagens de cada episódio variam e oferecem outras possibilidades dramáticas. Há um capítulo guiado pelo ponto de vista de Leanne durante uma jornada de paranoia em que tentam amedrontá-la; outro que marca a entrada de um novo personagem e da mudança da dinâmica na casa para flertar com o sobrenatural; e um terceiro baseado na alternância entre flashback e presente de Julian que, mesmo não atingindo o clímax desejado, transmite o peso do passado; e o penúltimo que se concentra nos traumas de Dorothy na mesma transição de linhas temporais distintas.

Diante dos altos e baixos de ritmo e de desenvolvimento da trama, “Servant” leva dez episódios para encontrar uma sintonia mais bem resolvida entre drama e suspense, perguntas e respostas e ambientação tensa. O desfecho, enfim, entrega algumas resoluções, tomando o cuidado de preservar os mistérios principais e de criar novos interesses para o espectador – isso é feito através da construção de momentos impactantes que causam reações diversas em quem assiste, como as cenas passadas na rua em frente à casa principal. Mesmo enfrentando percalços ao longo do caminho, a série se encerra capturando a atenção do público e estimulando a vontade de descobrir: quem é, de fato, Leanne? Quem são as pessoas ao redor dela? E o que aconteceu a Jericho?

Ygor Pires
@YgorPiresM

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