Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

1917 (2019): tomada contínua, tensão contínua

O "plano-sequência" de Sam Mendes é um deleite aos olhos e fornece uma experiência narrativa que coloca o espectador ao lado da dupla principal num incrível exercício de imersão aos horrores, aflições e superações da guerra.

Alfred Hubert Mendes foi um escritor de Trinidad e Tobago que acabou atuando como mensageiro para o exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial. Autor de várias obras e contos, nunca chegou a escrever todos aqueles que queria, mas os relatava para seu neto, Sam Mendes, famoso e competente diretor de produções como “Beleza Americana” e “007 – Operação Skyfall”. Assim, trouxe uma das histórias do avô à vida com “1917”.

A trama gira em torno de uma dupla de soldados que recebe a incumbência de levar uma carta para o coronel MacKenzie (Benedict Cumberbatch) numa distante frente de batalha, feito que precisa ser executado a pé já que todas as linhas de telefone estão inoperantes. A urgência reside no fato de que o comandante planeja um ataque devastador às forças alemãs, que estão em retirada. O que ele não sabe é que tudo faz parte de uma elaborada armadilha do adversário, descoberta tardiamente pela inteligência aliada. A tarefa cai nas mãos dos cabos Schofield (George MacKay, o verdadeiro e ótimo protagonista do longa) e Blake (Dean-Charles Chapman, o Tommen Baratheon de “Game of Thrones”), que precisam chegar a tempo para impedir a manobra militar e salvar a vida de 1600 combatentes. Para adicionar mais tensão e gravidade à situação, eles não têm nem mesmo vinte e quatro horas para cumprir a missão.

Sam Mendes trouxe uma abordagem ambiciosa para a obra: passar a impressão do filme ser uma única e longa tomada.  Essa escolha exigia, portanto, grande planejamento e outro nome de enorme talento, representado pelo consagrado diretor de fotografia Roger Deakins. Apesar de não ser a primeira vez que essa ilusão é usada, poucas estão no mesmo nível, resultando num feito não só tecnicamente impressionante, como também altamente imersivo – o espectador é colocado ao lado dos dois personagens principais como se fosse, na verdade, um trio. Cineasta e cinematógrafo trabalharam de tal forma unidos que as inúmeras decisões tomadas sobre posicionamentos de câmera enriquecem a experiência. Sempre passeando em volta dos protagonistas em diferentes ângulos e profundidades, ela ora é fechada e claustrofóbica, ora é ampla e afastada, mostrando elementos visuais do cenário repletos de relevância narrativa.

É admirável ter um produto audiovisual que, basicamente, segue pessoas andando e não é entediante. O foco não está na ação que acontece, mas no potencial perigo que espreita cada canto contornado, cada porta aberta, cada trincheira explorada. É um teste para os nervos que faz o público suar frio junto com os protagonistas a cada passo dado. A conexão com eles aumenta em função da proposta ter simples soldados recebendo uma monumental incumbência. Em sua simplicidade, o roteiro cria o artifício de que são indivíduos comuns, como os que estão sentados na sala de cinema presenciando esta épica aventura, e não heróis inalcançáveis.

Poderia haver um desenvolvimento mais profundo de Schofield e Blake, é verdade. Pouco se conhece deles durante o longa. Sabe-se que um deles tem um irmão (que pode cair na tal armadilha), porém isso é mais um recurso para elevar a urgência do que para explorar as motivações e personalidades dos dois. Entretanto, as atuações de George MacKay e Dean-Charles Chapman são fortes e carregam a narrativa até nos longos trechos sem diálogos, capaz de deixar a plateia tensa e amedrontada junto com eles, mesmo sem uma construção que leve a uma conexão mais profunda.

A recriação de época é certeira em seus figurinos e cenários, além de ganhar pontos por não se prender apenas às notórias trincheiras. Diferentes aspectos da geografia europeia são explorados com beleza, horror e louvor. Méritos de Sam Mendes e Roger Deakins, que ainda entregam uma cena na qual um dos personagens precisa correr entre prédios destruídos à noite, com iluminações apenas advindas de fogo, sinalizadores e explosões – algo que é um deleite para os olhos e para a sensação de que, ali, a morte é iminente.

O ambicioso esforço resulta numa obra tecnicamente deslumbrante. Desde o posicionamento da câmera até a mixagem de som, há aspectos que colocam o espectador próximo da dupla principal compartilhando seus receios e aflições. “1917” é um filme que captura o horror da guerra de forma dura e crua, ao mesmo tempo que faz uma ode ao potencial de valentia, sacrifício e altruísmo do ser humano perante a responsabilidade de salvar outros.

Bruno Passos
@passosnerds

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