Documentário singelo sobre um pólo têxtil no agreste pernambucano mostra a labuta de um povo humilde, honesto e trabalhador, que sonha todos os anos em poder pular o Carnaval.
“Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar“. O belo título do documentário nacional assinado por Marcelo Gomes, de “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005) e “Joaquim” (2017), compara-se aos mais eloquentes da filmografia nacional, ao lado de outros como “Quanto Vale ou é por Quilo?” (2005) e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2010). Mas quem espera por um filme fiel ao título precisa ser avisado de antemão que o inspirado nome é tão somente um epíteto, ou réquiem, para as histórias de luta, suor e muito trabalho na fabricação das cerca de 20 milhões de peças de jeans anualmente produzidas na cidade de Toritama, interior do estado de Pernambuco, por cooperativas têxteis.
Às margens do rio Capibaribe, a cidade de pouco mais de 44 mil habitantes é um dos pólos produtivos da região Nordeste, responsável por uma boa parcela do jeans consumido no Brasil, o que lhe confere o título honorário de “a capital do jeans” brasileira. A vocação é fonte de emprego e renda para milhares de trabalhadores locais, que se organizam sobretudo em regime de cooperativa (chamadas “facções”) e por isso se orgulham de serem donos do próprio trabalho. É assim que, todo ano, depois de uma intensa temporada de produção, a maioria deles deixa a cidade vazia durante o Carnaval, fugindo para alguma praia paradisíaca da região ou cidade mais badalada para curtir a folia. Os que não conseguiram dinheiro suficiente chegam até a vender móveis e eletrodomésticos, só para recomprar os bens quando retornam à cidade, e o velho matuto que faz a compra e venda dos bens todos os anos faz sua renda com o ágio. O importante mesmo parece ser não perder o Carnaval ou, ainda mais, não passá-lo em Toritama, lugar de trabalho onde a jornada costuma ir das sete da manhã às dez da noite.
Contudo, longe de ser um paraíso onde o capitalismo tenha dado certo, o olhar de Marcelo e sua narração em off carregada pela nostalgia da infância, quando visitava a cidade com o pai, destacam a simplicidade e improvisação do local, capturando trabalhadores que cochilam sobre amontoados de peças no horário de almoço, exaustos pela intensidade da labuta, e costureiras que se espremem em salas apertadas e sem ventilação. Em meio ao cenário árido de tons terrosos do agreste e dos mil e um tons de azul das peças de jeans que se empilham diante das portinhas das mais de cem cooperativas pela cidade, Marcelo vez ou outra se afasta do ritmo frenético de produção e do intenso barulho da maquinaria que, conforme ele confessa, lhe causa ansiedade, encontrando respiros ao mergulhar nos rincões locais e conversar com seus moradores. Alguns dos quais dariam filmes inteiros, como o adorável Léo, uma espécie de Chicó da vida real, que é pego pelo diretor cochilando em meio a roupas e aos poucos vai tomando parte do filme. Quando ele não consegue juntar dinheiro suficiente para a viagem de Carnaval, a equipe do documentário lhe paga os custos da viagem em troca de filmagens dos seus dias de descanso, enquanto Marcelo e sua equipe filmam uma Toritama vazia, como na memória do diretor, aguardando a Quarta-Feira de Cinzas, fim do Carnaval e começo de um novo ciclo de produção na cidade.
O trabalho sem fim desempenhado pela gente boa de Toritama revela, amiúde, um processo desigual que se desenvolve à revelia do esforço ou empreendedorismo da população local. Isso porque, embora a cidade tenha capacidade produtiva de mais de 20 milhões de peças por ano, sua renda só sobrevive à medida que as grandes exportadoras ainda não dominaram essa fatia do mercado, como atualmente a China, que produz cerca de um bilhão de peças de jeans por ano. Na periferia do capitalismo global, os operários de Toritama lutam por uma renda digna para uma vida confortável, às custas de uma rotina maçante de movimentos repetitivos que Marcelo captura com o olhar detalhista de quem faz uma etnografia antropológica audiovisual. Registrar para não se perder, ao menos na memória, a beleza desse Brasil de gente simples, honesta e trabalhadora, que no fim das contas só quer se divertir e pular o Carnaval.
“Estou Me Guardando…” teve uma rápida passagem pelos cinemas, com bilheteria pouco expressiva. Nas palavras do diretor e montador Eduardo Escorel, em crítica sobre o documentário, “a maioria dos espectadores de cinema não é atraída por grande parte dos filmes produzidos no Brasil”. Ainda que isso seja verdade, vale apontar que o documentário atualmente tem tido uma sobrevida a partir dos serviços de streaming e pode ser encontrado facilmente online de forma legal, uma vitória para uma produção documental brasileira.