Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Undone (Prime Video, 1ª Temporada): remendando o passado

Com uma interessante abordagem acerca dos arrependimentos humanos em relação ao passado, animação transborda personalidade através de ótimas personagens, visuais de tirar o fôlego e um roteiro bastante afiado sobre traumas e relações que moldam a nossa personalidade.

Em 2014, chegava à Netflix a animação “Bojack Horseman”, divertida sátira ao universo hollywoodiano protagonizada por um cavalo antropomorfizado. Carregada de excentricidade e significado, não demorou muito para que a série conquistasse uma legião de fãs, encantando muitos com seus cômicos comentários acerca da absolvição de grandes celebridades. Por conta disso, era inevitável que o estrondoso sucesso – conquista que rendeu ao seriado seis aclamadas temporadas – amplificasse a popularidade da Tornante Animation, produtora (iniciante na época) que agora aumenta seu escopo com a existencialista e igualmente inesquecível “Undone”.

A melancólica Alma Winograd-Diaz (Rosa Salazar) leva uma pacata e entediante rotina em uma pequena cidade dos EUA. Cansada da mesmice, ela reflete sobre seu cotidiano enquanto se afasta de seus entes mais próximos, rejeitando os auxílios da mãe Camila (Constance Marie) e sentindo o afundar de seu relacionamento com o namorado Sam (papel do carismático Siddharth Dhananjay). Não bastassem tais dificuldades, sua irmã e braço-direito Becca (Angelique Cabral) está às vésperas do casamento, prestes a conquistar uma felicidade que Alma julga não estar ao seu alcance. Tudo muda, entretanto, quando a protagonista sofre um terrível e excêntrico acidente, fenômeno quase fatal, mas que acaba lhe concedendo uma curiosa habilidade: a capacidade de modificar e navegar pelo tempo, que usa para solucionar os mistérios por trás da morte de seu querido pai, o inteligente pesquisador Jacob (Bob Odenkirk), com quem passa a se comunicar.

Criada e roteirizada pelo excelente Raphael Bob-Waksberg e pela ilustrissíma Kate Purdy, mentes por trás das desventuras do irreverente equino, a deliciosa dramédia é distribuída pela Amazon Prime Video. Conta também com a direção estreante de Hisko Hulsing, brilhantemente escolhido pela dupla de idealizadores. Transparecendo uma marcante assinatura logo em seu primeiro trabalho, o diretor usufrui com muita inteligência da técnica escolhida para o projeto. Feito em rotoscopia (prática que consiste em redesenhar quadros de filmagens com traços animados), essa opção lhe permite a composição de belíssimos quadros que flertam com a sobreposição de memórias sobre o presente, construindo mosaicos extremamente coloridos que mesclam diferentes linhas temporais. Dessa forma, ele constrói uma experiência imersiva e sensorial, investindo em visuais psicodélicos de encher os olhos e cujo refinamento estético se iguala à qualidade da interessante narrativa. É o que se percebe, por exemplo, no segundo capítulo da produção, ambientado em um hospital que introduz perfeitamente os novos poderes da mulher através de repetições registradas por diferentes pontos de vista e da exploração de algumas lembranças.

Não suficiente, essas viagens ao passado também operam como um sagaz instrumento no desenvolvimento das personagens, permitindo ao espectador entender melhor tais figuras e seus comportamentos. É assim que é trabalhada, por exemplo, a origem da paixão entre a protagonista e Sam – justificada pela identificação mútua de pessoas que, desde crianças, se sentiram deslocadas -, os motivos das desavenças entre ela e sua progenitora – marcada pela dificuldade da última em entender e respeitar certas decisões da filha – e, principalmente, a relação paterna precocemente finalizada, aprofundada através dos treinamentos que realiza com aquele que perdeu durante a infância. Dessa forma, Hulsing constrói figuras críveis e com as quais é extremamente fácil se relacionar, deixando claro o uso de dons sobrenaturais como pano de fundo para discorrer sobre os moldes da essência humana.

Seria injusto ignorar, entretanto, a função dos roteiristas no planejamento dessa lúdica jornada sobre autodescobrimento, responsáveis pelo belíssimo arco conferido à Alma. Insegura e visivelmente solitária, ela nunca superou a perda de Jacob e é incapaz de seguir em frente em função desse tenebroso trauma. Ao desbloquear uma via “cósmica” de interação com o pai, todavia, ela mergulha em uma cativante aventura para tentar curar a devastadora ferida deixada em sua vida, aprendendo com ele maneiras de evoluir a manipulação temporal e tentar salvá-lo. Ao protagonizar tal curva de aprendizado, ela amplifica o distanciamento com aqueles fisicamente ao seu redor, pessoas que não entendem suas aflições e que as interpretam como frutos de desvios psicológicos. Temos assim um dos principais méritos do texto de Waksberg e Purdy: a inevitável dúvida transmitida ao espectador, que se vê dividido entre acreditar nas travessias temporais ou compreendê-las como resultado de uma fértil imaginação. Como se não bastasse, essa curiosa ambiguidade (muito bem sustentada até o final) também acaba por construir um interessante debate acerca dos choques entre cultura e ciência, mostrando como certas crenças e comportamentos são suprimidos pelo “conhecimento” e levam à marginalização de certos indivíduos e civilizações.

Por fim, é impossível não reconhecer que o extraordinário elenco acaba por engrandecer bastante a produção, estrelando-a com um perfeito equilíbrio entre humor e dramaticidade. Tendo suas ações preservadas pela rotoscopia, os atores conseguem ir além da captura de vozes tão comum em animações e, verdadeiramente, atuam para dar vida às suas personagens. Dessa forma, trabalham figuras extremamente naturais, encontrando em atitudes típicas do cotidiano seu carisma para conquistar o público. É o caso da simpática Angelique Cabral, que faz de sua Becca uma ingênua e fofa irmã mais nova que depende de Alma na resolução de decisões ruins, prestes a dar um importante passo em sua vida; e do divertido Siddharth Dhananjay, perfeito no papel do namorado abobalhado, mas cheio de compaixão. Apesar desses destaques, é no misterioso Bob Odenkirk e, especialmente, na carismática Rosa Salazar, que residem as melhores atuações. Enquanto o último consegue transcender os esteriótipos do pai ausente e incorporar uma adorável, embora por vezes duvidosa, figura paterna, Rosa mistura com bastante talento traços de uma personalidade depressiva e, ao mesmo tempo, cheia de identidade, transmitindo o cansaço de uma mulher indecisa se preserva seu presente ou investe em um passado que pode se provar irreversível.

Cheia de personalidade e belissimamente animada, “Undone” se apoia em traumas passados e em dificuldades do cotidiano para construir uma experiência única. Carregada de ótimas atuações e personagens facilmente relacionáveis, a série se mostra um psicodélico e divertido manifesto acerca de duas características tão comuns na humanidade: a persistência em tentar corrigir o passado ao invés de aprender como preservar o presente e a incessante busca por alguém que nos compreenda. Fica o aguardo para uma segunda temporada igualmente bem-humorada e dotada de identidade.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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