Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O Escândalo (2019): resistindo ao silêncio

Sustentado por impressionantes atuações, o filme é uma urgente ode à importância de transcender o silêncio e um exercício de resistência aos tenebrosos assédios sexuais.

Fortalecido em outubro de 2017, o movimento #MeToo se iniciou quando a ativista Tarana Burke usou a hashtag para expressar apoio à vítimas de abuso sexual. Impactadas pelas denúncias feitas contra o monstruoso produtor Harvey Weinstein, não demorou muito para que influentes personalidades de Hollywood se juntassem à urgente causa. Dessa forma, ampliou-se uma importante corrente, força que derrubaria perigosos homens até então protegidos pelo silêncio. Um ano antes dessa fundamental manifestação eclodir, entretanto, um dos predadores engravatados já atravessava sua merecida queda: Roger Ailes (interpretado por um odioso John Lithgow), ex-presidente da Fox News cuja derrocada é o tema do impactante “O Escândalo”.

Dirigido por Jay Roach (“Até o Fim”), o filme alterna entre figuras reais e fictícias para apresentar a trajetória de três mulheres que trabalharam na poderosa emissora: a iniciante Kayla Pospsil, personagem inventada para a excelente Margot Robbie; a âncora Gretchen Carlson vivida por Nicole Kidman; e a jornalista Megyn Kelly, protagonista magistralmente interpretada por Charlize Theron. Vítimas de assédio por parte do tenebroso chefe, elas vão da humilhação à luta em uma narrativa angustiante, encontrando no apoio mútuo a força necessária para resistir.

Embora um pouco operante, a direção é eficiente na condução de suas temáticas, explorando com profundidade os bastidores do sujo universo jornalístico. Para isso, o diretor aposta em um primeiro ato bastante sarcástico, reservando ao trio principal a tarefa de explicar, através de ácidas narrações, a podre burocracia do microcosmo em tela (escolha que, embora não seja inédita, adquire um tratamento interessante). Nesse sentido, merece destaque a sequência inicial, cômica introdução conduzida por Megyn Kelly e ambientada durante os debates políticos pré “Era Trump”, período no qual críticas ao atual presidente norte-americano tornaram a comentarista bastante famosa. Engrandecendo tal abordagem, Roach ainda faz uso de eficientes montagens de caráter mais documental, beneficiando-se da mescla entre dramatizações e arquivos de vídeo tão bem administrada pela edição.

À medida que a produção avança, percebe-se uma necessária redução dos toques de humor, decisão que poderia ser mais precisa não fossem certos alívios cômicos que insistem em permanecer. Embora funcionem em algumas passagens, acabam por destoar do peso dramático tão bem conduzido em outras, resultando em um produto por vezes inconsistente. Não bastasse esse aspecto, existem também atropelos por parte do editor Jon Poll (“O Rei do Show”), em alguns momentos incapaz de transitar com fluidez entre as protagonistas. Essas características, no entanto, são compensadas pelo roteiro de Charles Randolph (“A Grande Aposta”), que, apesar de familiar, traz muito sobre o que se pensar.

Com direito a momentos arrebatadores, a assinatura de Randolph acaba produzindo grandes acertos. Em primeiro lugar, temos um importante discurso acerca da banalização da violência (física e psicológica) diariamente realizadas contra as mulheres, mostrando como a impunidade daqueles cujas ações são normalizadas prejudicam movimentos femininos tais como o da Fox News. Somado a isso, o espectador também encontra um poderoso argumento acerca do contagioso silêncio (alimentado pelo medo e por sensações de impotência) que se reproduz em ambientes tóxicos, demostrando através do fortalecimento dos laços do trio principal como a união é o melhor remédio – clara resposta àqueles que desmerecerem iniciativas como as do #MeToo ao acharem “suspeito” o surgimento de várias acusações simultâneas e tempos após o ataque denunciado.

Em segundo lugar, o roteirista igualmente merece elogios por conseguir ir além do debate ao redor dos assédios, indicando como a inferiorização da mulher também se faz presente de formas mais sutis (e por isso, infelizmente, ainda mais difíceis de se identificar). É o que é brilhantemente trabalhado através das contradições sentidas por Megyn, por exemplo. Endurecida pelas maldades presenciadas ao longo dos anos, ela se mostra extremamente ousada e destemida, encontrando espaço na televisão para desafiar Trump e quem bem entender. Por trás das câmeras, todavia, ela deve certificar à equipe de filmagem que não é feminista e passa a ser vítima de comentários conservadores e ataques odiosos sem receber o mínimo de suporte por parte de seus superiores. Sendo assim, é exibida como símbolo dos supostos avanços da Fox News enquanto não é capaz de confiar no próprio chefe, um homem terrível contra o qual jamais se atreveu a levantar a voz (força apenas recuperada ao ouvir os testemunhos das demais vítimas). Finalmente, o texto ainda coroa a obra com uma agridoce constatação, transparecendo a lentidão dos avanços visados pela resistência, mas destacando a importância da união nessa mesma.

Em relação ao elenco, seria injusto ignorar que este não fica atrás das habilidades de escrita, haja visto o desempenho de Charlize Theron (irreconhecível em função do extraordinário trabalho de maquiagem) e Margot Robbie em especial. Dona do maior tempo em tela, a primeira consegue transmitir magistralmente a ousadia e o cansaço perante as repetidas buscas por melhora, convencendo como uma mulher cujo poder, quase esgotado, precisa de um urgente empurrão. É a segunda, no entanto, quem mais impressiona, carregando uma ingenuidade que contrasta com a feroz comentarista e protagonista das cenas mais angustiantes e repulsivas. Apesar desses destaques, é uma pena que o mesmo não possa ser dito da performance de Nicole Kidman, atriz que se vê sabotada por um roteiro (sendo essa a única falha de Randolph) incapaz de aproveitar todo o potencial de sua Gretchen Carlson. Sendo a primeira a se manifestar contra Ailes, a âncora é dona de uma inegável coragem, mas merecia um maior desenvolvimento.

Duro e extremamente necessário, “O Escândalo” pode até parecer familiar, mas conta com fabulosas atuações de Charlize Theron e Margot Robbie, e, principalmente, com uma desesperadora mensagem. Com a amplificação cada vez maior de vertentes como #MeToo através das redes sociais, o filme é um gratificante exercício da sétima arte na expansão desses fundamentais holofotes. Serve como um lembrete de que o cinema vai muito além do mero entretenimento, dotado de grande potencial “porta-voz” na denúncia de perigosas mazelas atuais.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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