Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Um Lindo Dia na Vizinhança (2019): poder da empatia

Com interpretações fantásticas e ótimo uso da recriação de famoso programa infantil americano, o filme é uma bela homenagem a um ídolo e seu legado.

Em 1968, estreava o programa “Mister Rogers’ Neighborhood” nos Estados Unidos. Seu apresentador, Fred Rogers (carinhosamente chamado pelos fãs de “Mr. Rogers”), debatia temas com uma linguagem infantil positiva e inteligente, conquistando tantas pessoas que cresceram com seus ensinamentos que é tido como um ídolo americano e símbolo de pureza, bondade e compreensão. O sucesso foi tamanho que o último episódio foi ao ar em 2001, totalizando trinta e três anos de existência. Ele faleceu dois anos depois. Com importância significativa que o fez ser figura tão estimada pelo público estadunidense, o anúncio do filme “Um Lindo Dia na Vizinhança”  poderia despertar grande apreensão sobre como um homem tão querido iria ser retratado nas telas.

Para esta ingrata tarefa, foi convocado outro bastião do bom-mocismo e da gentileza, o consagrado Tom Hanks. Mesmo não se parecendo fisicamente com o apresentador, o ator o traz à vida de modo esplêndido: sua fala vagarosa e carinhosa, movendo-se lentamente, mas expressando uma aura de calma e conforto que não só é fiel aquele indivíduo, como também mostra o enorme talento da atuação.

O filme abre com a encenação da famosa abertura do programa infantil, com direito a cantar a música tema e até usar gravatas do próprio Rogers, cortesia de sua viúva. A autenticidade de recriação é certeira, tendo a produção utilizado o mesmo estúdio e as mesmas câmeras da época e alterado a razão de aspecto – assim, a imersão é imediata. A sequência segue com o show e evolui esse segmento para que os temas tratados sejam, basicamente, a trama principal do longa. E aqui vem a surpresa: não é uma cinebiografia sobre aquela celebridade.

O jornalista Tom Junod realizou uma série de entrevistas com o astro e, em 1998, publicou um renomado artigo na revista Esquire. O filme conta a história do repórter durante seu trabalho e do impacto que o entrevistado teve em sua vida. Interpretado por Matthew Rhys, Junod (chamado de Lloyd Vogel) vê seu ceticismo desafiado pela figura tão naturalmente alentadora com quem se depara ao longo de vários encontros. O jornalista é um homem quebrado por um passado complicado com seu pai (o ótimo Chris Cooper) e precisa lidar com sentimentos raivosos ao mesmo tempo em que agora encara sua própria jornada paterna. A forma como o roteiro faz com que as conversas mudem o foco para o próprio protagonista por meio de reações e frases bem escolhidas de Rogers funciona através das atuações soberbas de uma pessoa benévola e de um sujeito sisudo e desgostoso.

Com isso, o filme se torna, na verdade, uma homenagem àquela estrela televisiva, exaltando suas habilidades de conseguir falar com crianças sobre como lidar com sentimentos ao invés de ignorá-los e guardá-los na esperança de que não as magoem. Lições que podem ser aprendidas por adultos também, como Vogel percebe durante suas entrevistas que acabam sendo involuntárias sessões de terapia.

Há uma simplicidade na maneira com que Rogers é retratado, porém isso não o torna unidimensional ou utópico e inalcançável. Exalta-se o ídolo e exemplo que continua sendo para milhões de pessoas. Há pequenos relances sobre como ele é humano e lida com emoções que não ultrapassam pinceladas na trama principal.

A direção de Marielle Heller é precisa. Começando pela escolha estética de usar as maquetes estilizadas da produção televisiva para ilustrar mudanças de cenários e cidades, enquanto a homenagem é feita, a narrativa ganha em coesão. Inclusive, decide-se deixar uma cena ou outra durar um pouco mais para dar a sensação de que a mensagem não é só para Vogel, mas igualmente para o público. Chama a atenção também como o apresentador está em ambientes sempre bem iluminados, contrastando de maneira eficiente com o protagonista, sempre envolto em sombras e escuridão. Esse contraste é usado de maneira singela nas cenas de entrevistas, mostrando como se trata de uma figura que traz momentos de luz e lições em suas palavras e em seu ser.

O filme tem enorme respeito pelo material fonte e imenso amor pelo programa infantil, fazendo uso de recriações visuais e da trilha sonora que visita as notas do tema de abertura em vários momentos. Com inúmeros elementos que honram Fred Rogers e sua habilidade de se comunicar com crianças num nível que respeita suas emoções, inspirando gerações a serem mais gentis com o próximo e consigo mesmas, “Um Lindo Dia na Vizinhança” é uma comovente homenagem a um ícone cultural americano e seu legado de esperança.

Bruno Passos
@passosnerds

Compartilhe