Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 07 de janeiro de 2020

Você (Netflix, 2° Temporada): crime e castigo

Segundo ano da série expande o elenco, amplia os conflitos e traz um protagonista reflexivo sobre o amor e vulnerável ao passado.

Abandonada pelo canal Lifetime, a Netflix garantiu a compra dos direitos de “Você” e menos de 1 mês depois do seu lançamento na plataforma de streaming a série se tornou um fenômeno assistido por mais de 40 milhões de contas, segundo dados da empresa. Com o sucesso em seu ano de estreia vieram junto algumas controvérsias. Contada sob o ponto de vista de Joe (Penn Badgley), um homem inteligente, charmoso e bem articulado, que na verdade esconde uma figura abusiva e cheio de excessos, inclinado a cometer atrocidades em nome do “amor”, a série foi – injustamente – acusada de minimizar os atos criminosos dele, bem como romantizá-lo, induzindo parte da audiência a agir como cúmplice e ser conivente com suas ações. Por conta disso, é uma produção que exige, além de descrença, um olhar hábil o bastante para desfrutar da narrativa, assim como visualizar os riscos que o conteúdo apresenta.

Ancorada novamente na narração de seu vilão (isso mesmo, nada de pintá-lo como anti-herói!), “Você” chega para um segundo ano prometendo não fugir de sua essência, muito menos de sua estrutura. Alimentada por polêmicas, chega com um ritmo mais intenso graças a introdução de figuras envolventes, dilemas intrigantes, coadjuvantes expressivos e um mergulho profundo na psique de seu protagonista, que surge reflexivo e atormentado por fantasmas do passado. Com o primeiro ano da série encerrado após o assassinato de Beck (Elizabeth Lail) e prisão do Dr. Nick (John Stamos), esta continuação, mais uma vez adaptada pelo duo Sera Gamble (“The Magicians”) e Greg Berlanti (“Arrow”) a partir de um argumento inspirado no romance Corpos Ocultos (2019) da escritora norte-americana Carolina Kepnes, acompanha a fuga de Joe para Los Angeles após ele ser procurado por Candance (Ambyr Childers), sua antiga obsessão.

Bem-vindo a Los Angeles, Will!

Trocar o Brooklyn pela Cidade dos Anjos é mais do que uma simples viagem. A mudança de ambiente, em princípio, pode representar um saída fácil, mas na verdade, é quase como atirar Joe aos leões (leia-se aspirantes a celebridades, paparazzis, pessoas fúteis, falsos veganos e malucos por redes sociais), e dessa forma, dar início a um complexo e inevitável processo de desintoxicação, construído orgânica e gradativamente pelo roteiro a partir do confronto dele com situações com as quais tem mais repúdio e que o levam inconscientemente ao passado, à medida que vai se estabelecendo no lugar e desenvolvendo as primeiras relações com seus novos vizinhos. O que nos leva diretamente a Delilah (Carmela Zumbado), gerente do prédio no qual Will (identidade assumida por Joe mediante mais uma de suas controversas ações), e Ellie (Jenna Ortega), sua irmã caçula aspirante a roteirista.

Se em Nova Iorque os coadjuvantes sucumbiram ao romance tóxico dos personagens centrais, sendo utilizados como uma delicada ferramenta narrativa para empurrar a história deles, neste ano da série o casting não só oferece um ótimo suporte como por vezes termina por se destacar além do protagonista, o que de certa forma impede que o espectador em muitos momentos se pegue passando pano para as atitudes de Joe. Envoltas por uma relação conflituosa, Zumbado e Ortega apresentam uma química palpável como irmãs, porém é a segunda quem rouba a cena interpretando uma adolescente de 15 anos de língua afiada e determinada a se transformar numa figura relevante na sociedade, fazendo frente a Penn Badgley sempre que aparecem dividindo cena, diferente do frágil garoto Paco (Luca Padovan), que exercia sem muito brilho uma função que deveria ser ainda mais importante por não estar no livro.

Um amor chamado Love

Novos ares, novos vizinhos, um novo trabalho… A intenção de Joe/Will era levar uma vida casual que logo lhe pudesse tirar da perniciosa Los Angeles. Mas o que seria dele e de nós sem uma nova fixação? Atendendo – ironicamente – pelo nome de Love (Victória Pedretti), a chefe de cozinha do “mercado orgânico” Anavrin logo desperta os pensamentos mais lascivos do protagonista e a vontade dele em ser novamente um príncipe encantado. Ao contrário da passiva Beck, Love Quinn é uma personagem muito mais forte, envolvida por camadas misteriosas sustentadas em grande parte por lampejos de um passado incerto. E Pedretti, armada de carisma e talento, sabe como aproveitar as nuances de sua personagem. A atriz confere a ela o peso dramático necessário para aguçar a curiosidade do público, foge da pecha da mocinha indefesa e carente, além de se revelar astuta o bastante para entrar no jogo do amor promovido pelo seu pretendente.

Para apimentar os conflitos da trama e injetar vigor às subtramas, a série conta com a presença do irmão gêmeo Forty Quinn (James Scully), um roteirista fracassado, contaminado pelo estilo de vida da cidade e pronto para se afundar em drogas na primeira oportunidade – que até pode soar como trampolim para as práticas do casal em destaque. No entanto, a interpretação aprazível e enérgica de Scully catapulta sua figura para uma cena mais importante dentro da narrativa, o que somada a estreita relação dele com a irmã, desenhada propositalmente com traços turvos pelo roteiro, tornam sua existência estimulante e indispensável. Juntos, o triângulo formado por Forty, Love e Joe/Will exibem uma agitada dinâmica movida a ciúmes, frustrações, cumplicidade, amor e brigas que entretêm e guarda reviravoltas até o último instante (ênfase aqui no 8° e 9° episódios, os melhores e mais criativos dessa nova leva).

Veredito

Estruturada por duas figuras experientes em fazer televisão, cuja noção do veículo permite uma condução sólida, ágil e espontânea ao longo de 10 episódios, “Você” consegue surpreender o espectador com mais uma excelente temporada. Reforça as subtramas com personagens cativantes, apresenta atuações mais sóbrias e traz consigo um leve toque de humor, inserido nas horas certas. Além disso, proporciona um estudo acentuado na mente do criminoso, corroborado com a inserção de flashbacks pontuais. Ao final, a certeza de que sabemos, porém queremos ser manipulados por Joe por mais alguns anos.

Renato Caliman
@renato_caliman

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