Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo (Netflix, 2019): sátira mordaz

O final do ano se aproxima e com ele vêm algumas certezas: uva passa no arroz, maçã na maionese, cravinhos-da-índia no chester e um especial polêmico do Porta dos Fundos.

Lançado em 2018 pela Netflix, o controverso “‘Especial de Natal Porta dos Fundos: Se Beber não Ceie” trouxe figuras bíblicas inseridas num plot bastante semelhante ao da franquia “Se Beber não Case”. Ainda muito refém do próprio estilo do programa, o filme não conseguiu ir além de sua premissa criativa do ponto de vista cômico, enquanto gerou algumas críticas em termos midiáticos, mas nada muito agressivo. Embora não tenha tido a repercussão desejada, rendeu ao grupo, em 2019, a estatueta do Emmy Internacional de Melhor Comédia. Com a chegada de um novo ano e respeitando as convenções sociais, Porta dos Fundos e Netflix renovaram os votos para lançar agora o “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo”. Ignorando qualquer tipo de polêmica em tempos de intolerância e ódio, a encenação supera a sua antecessora em criatividade e com um texto extremamente ágil e mordaz promete ser um excelente tempero para as ceias em família.

À espera de Jesus, após este passar quarenta dias em peregrinação pelo deserto, Maria e José organizam uma festa surpresa para comemorar os trinta anos do filho. Porém, a chegada dele acompanhada do misterioso Orlando desencadeia uma série de revelações sobre seu passado e o que lhe espera no futuro. Quem conhece o Porta dos Fundos sabe que o humor do grupo não poupa ninguém quando o assunto é transformar temas controversos e – infelizmente -, atuais em esquetes ácidas para tirar sarro da hipocrisia intrínseca à humanidade. Já foram alvo de zoação o racismo (vide os vídeos “Negro” e “Amiguinho”); machismo (exemplificado pelos vídeos “Mansplaining” e “Homem Não Sabe Ouvir Não”); terrorismo (presente nos vídeos “Terrorismo e “Homem Bomba”); política (vide os vídeos “Debate”, “Delação”, “Escola sem Partido”); e muitos outros. Entretanto, de todos os enunciados nenhum incomoda tanto quanto a religião, motivo certo que levou o canal a se aprofundar no tema, para desespero dos cidadãos de bem.

Antes de prosseguir, vamos esclarecer a diferença entre blasfêmia e sátira, termos que estão em dois campos de sentido diferentes. A blasfêmia é uma palavra, expressão ou afirmação que insulta ou ofende o que é considerado digno de respeito ou reverência; já a sátira é uma composição livre e irônica contra instituições, costumes e ideias da época, sendo uma linguagem e um recurso críticos do campo das artes, de tipo humorístico. Dito isso, fica evidente que, em seus pouco mais de 40 minutos de duração, o filme nada mais faz do que ridicularizar os vícios e as imperfeições do próprio ser humano, usando importantes figuras bíblicas para chamar a atenção para a dissimulação de grande parte da sociedade, em sua maioria conservadora. As ideias de um Deus todo poderoso com uma aparência hipster e comportamentos questionáveis, de um Jesus em dúvida sobre aceitar as responsabilidades e também sobre sua sexualidade e de Reis Magos falhos e mesquinhos surgem para provocar e nos fazer refletir sobre nós mesmos, nossas ações e julgamentos perante a sociedade.

Note que o “alvo” da crítica do canal humorístico não é Deus, mas sim a imagem Dele que nós temos pintada e replicada durante séculos. E a sátira da trupe é bem elaborada, conduzida eficazmente para causar risos, graças ao que eles têm de melhor: roteiro e atores. Torna-se possível, então, se deliciar com as excelentes piadas e críticas ao longo da produção – que miram no machismo, intolerância religiosa, racismo, preconceito, etc. – e que ganham ainda mais força nas interpretações impagáveis do verborrágico elenco, encabeçado pelo sempre ótimo Fábio Porchat como Orlando, Antonio Tabet (Tio Vitório/Deus), Rafael Portugal (José), Evelyn Castro (Maria) e Gregório Duvivier (Jesus, que no fim das conta não importa se é gay ou não). O “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo” é apenas um retrato da sociedade atual na qual estamos inseridos e uma indicação que deveríamos nos preocupar muito mais com a fome na África, o desmatamento da Amazônia, a LGBTfobia e as mortes nas favelas do que se Jesus foi gay ou se vai ter bolo de nozes com ameixa no Natal.

Renato Caliman
@renato_caliman

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