Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de janeiro de 2020

Donnybrook (2018): patriotismo americano de cada dia

Com uma ótima construção de personagens, o filme retrata de forma crua a vida de um veterano de guerra sem nenhuma perspectiva, que faz de tudo para ter uma vida melhor.

“Donnybrook” retrata a jornada de Jarhead Earl (Jamie Bell), um veterano de guerra que vive na pobreza com sua esposa e casal de filhos, fazendo de tudo para melhorar a vida financeira do seu núcleo familiar, mesmo que através de meios ilícitos. O objetivo de Earl é ir até Donnybrook, lugar que dá nome ao filme, um ringue de luta livre onde o ganhador leva 100,000 dólares. Além de Earl, também temos Chainsaw Angus (Frank Grillo) e Delia (Margaret Qualley), casal de irmãos traficantes de drogas que mantém um relacionamento instável por conta do temperamento explosivo de Angus.

O filme obtém sucesso ao retratar os ambientes de atmosfera sombria por onde os personagens transitam, causando uma sensação de melancolia por toda a narrativa. Após Earl assaltar uma loja de armas para conseguir o dinheiro para se inscrever na luta de Donnybrook, o policial Whalen (James Badge Dale) comparece ao estabelecimento e por já conhecer Earl e saber que a quantia que ele levou é exatamente o quanto precisa para sua inscrição, o mesmo fala para o dono do estabelecimento que “tem coisas piores no mundo do que um veterano tentando ganhar uma briga e se reerguer”. Além de pontuar que não vão existir punições da lei americana para os atos criminosos dos personagens, a fala de Whalen também deixa claro o comentário que o filme faz sobre como os Estados Unidos recebem aqueles que voltam da guerra: Earl se livra de uma prisão por conta de seu passado por ser considerado um herói, Angus consegue uma carona em determinado ponto chave da história apenas porque afirma também ser um veterano, e na cena final em Donnybrook todos param para escutar uma música patriota enquanto estão prontos para entrar numa briga que pode ter consequências fatais. A visão do roteiro e da direção, ambos de Tim Sutton, deixa claro: o estado falhou com essas pessoas e as motivou a se tornarem a pior versão de si mesmas.

Onde o roteiro perde um pouco a mão é na trajetória completa de Earl. Ainda que seja um personagem bem construído, sua jornada até Donnybrook acompanhado de seu filho mais velho não é cativante em todos os momentos. No começo, se envolvendo em situações cada vez mais perigosas para alcançar seu objetivo, no segundo ato, sua história acaba ficando em segundo plano, estagnada. O que dá lugar para o protagonismo de Angus e Delia: apesar de não sabermos muito sobre o traficante, cada cena onde o personagem de Grillo está presente vai ficando gradativamente mais tensa, pois ao longo da narrativa somos testemunha do seu comportamento violento. Nas suas aparições, já é esperando algum tipo de explosão do personagem, fazendo assim com que se fique receoso com o destino de todos aqueles que o tiram do sério ao cruzarem seu caminho.

“Donnybrook” constrói bem seus personagens e suas características multifacetadas, acompanhados de ótimas atuações de todo o elenco. Mesmo executando ações muitas vezes questionáveis, a sensação de que o protagonista é inerentemente uma pessoa boa permanece. A forma abusiva que Angus trata o relacionamento com a sua irmã Delia é representada por cenas cada vez mais bizarras envolvendo a personagem de Qualley, e mesmo sem falar muita coisa, é possível entender o estado perturbado que sua mente se encontra e como o relacionamento com o irmão afeta todas as facetas de sua vida. Estando na posição de representar a lei, o policial Whalen tem comportamentos igualmente abusivos com sua ex parceira, é viciado em drogas e se recusa a reportar diversas situações para a polícia, preferindo ir atrás de seus objetivos por conta própria. Talvez o plot de Whalen, apesar de trazer um bom comentário, seja o mais desconexo do resto da narrativa por se desenrolar de forma decepcionante, mesmo com todo potencial que seu personagem apresentava.

Um ponto que a história também acaba trazendo à tona é a masculinidade tóxica de quase todos os personagens homens. Porém é difícil saber se o filme está condenando ou vangloriando este tipo de comportamento. Enquanto pode ser uma crítica negativa pela forma completamente errada que a maioria das mulheres do filme são tratadas, o diretor parece esquecer outras nuances que também são condenáveis na forma que decide retratar a as suas personagens femininas. Um exemplo dessa contradição é uma cena onde uma atriz aparece completamente nua, que não acrescenta nada à narrativa e apenas contradiz o que foi construído sobre ela até aquele momento.

A direção de Sutton dá um ritmo estável para o filme, mesmo que o argumento nem sempre construa muito bem a ligação entre protagonista e antagonista. “Donnybrook” também apresenta cenas cruciais construídas no período da noite que são extremamente mal iluminadas, fazendo assim que não dê para entender o que aconteceu até o final de cada um desses momentos, tornando-os decepcionantes.

Com um final mais moderado do que a construção da história insinua que será, porém perfeitamente satisfatório, “Donnybrook” é um bom estudo de personagem sobre as dualidades das relações humanas e como o ambiente onde vivemos molda nossas atitudes as pessoas que somos.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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