Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 28 de dezembro de 2019

Moonwalker (1988): genial só em sua música [CLÁSSICO]

Antologia escrita pelo próprio Michael Jackson é estranhíssima e carece de uma linha narrativa. O resultado é uma obra desconexa e bizarra, que escancara alguns de seus desejos, sua megalomania, sua genialidade musical e sua gigantesca ingenuidade perante assuntos complexos.

Moonwalker” foi produzido para ser lançado junto com a turnê mundial do álbum “Bad” de Michael Jackson e gerar mais hype ao redor do astro. Inicialmente planejado para chegar aos cinemas ao redor do mundo, acabou saindo direto em vídeo nos Estados Unidos, apesar de ter chegado às telas grandes da Europa e da América do Sul. O longa é basicamente uma antologia com sete segmentos feitos para representar diferentes aspectos da sua carreira, com algumas críticas à mídia e aos próprios fãs.

O primeiro bloco é uma performance de “Man in the Mirror”, canção com uma das maiores mensagens que o cantor tentava transmitir,  defendendo que a mudança para um mundo melhor se inicia em nós mesmos, com o “homem no espelho”. Baita letra. Baita melodia. Baita obra. Entretanto, o resultado é… confuso. No começo, parece ser só uma montagem de vários shows com a música sendo tocada e fãs desmaiando às pencas. Na parte final da apresentação, aparecem figuras políticas e líderes importantes com imagens intercaladas de crianças famintas. O foco era mostrar performances impressionantes ou reforçar a mensagem da letra? Faltou unidade narrativa.

A segunda porção é composta de vários itens e trechos de canções e vídeos sobre a vida de Michael Jackson desde a infância até seu mais recente álbum à época. É um exercício visual interessante, porém só vale mesmo para quem conhece um pouco da trajetória da personalidade. Para quem não conhece, é apenas bizarra e despropositada. Novamente faltou harmonia.

O segundo bloco termina ao chegar ao álbum “Bad”, passando para o videoclipe da música homônima, só que com crianças. Há um menino (Brandon Quintin Adams) imitando o astro e vários outros fazendo o mesmo com os adultos do clipe original. Levanta-se então a pergunta: Por que essa escolha? Nada se justifica e ela parece sem propósito, ainda mais com a decisão de dar bigodes e barbas desenhadas aos jovens. Pode até ser legal ver os garotos dançando como a estrela, mas é muito brega também. A ideia era somente fazer algo legal? Ou havia a intenção de algum sentido por trás disso tudo que não ficou claro? Todas as opções parecem simplesmente gratuitas.

O Michael Jackson infantil, de repente, se transforma no adulto real e isso dá início ao próximo segmento com “Speed Demon”. O filme então vira uma mistura de chroma key que não envelheceu bem, com um stop motion esquisito e, francamente, assustador, e aí desbanca para uma cena de perseguição que apenas causa estranheza. É o trecho mais bizarro, contudo, pelo menos, é possível entender a mensagem por trás da loucura: uma crítica aos fãs que o seguiam fanaticamente, mas não tentavam compreender o significado de seus trabalhos. Finalmente, aparece uma coesão narrativa.

Em seguida, vem o momento de “Leave Me Alone”, uma sequência em animação com Michael Jackson e seu chimpanzé (reais, não desenhados) voando por um gigantesco parque de diversões que é ele próprio deitado. Aqui o casamento entre o elemento musical e o visual funciona muito bem. Basicamente, se retrata o cansaço quanto ao assédio midiático e às invenções sensacionalistas absurdas sobre sua vida e os pedidos por maior tranquilidade. O trecho traz os membros da imprensa como cachorros, espelhando o que é dito no refrão de “Just stop dogging me around” (algo como “apenas parem de me seguir como cachorros”, em tradução livre). A performance termina com o Rei do Pop se levantando e destruindo o parque, numa sonhadora catarse de quem quer se libertar daquele circo imposto pela imprensa. É a passagem mais redonda e foi usada também como videoclipe da música, que até ganhou um Grammy.

O penúltimo segmento, que por mais que seja um dos exercícios narrativos mais bobos que já foram projetados numa tela de cinema, também rendeu a espetacular filmagem de “Smooth Criminal”. Cria-se uma trama de ficção. Crianças amigas de Michael Jackson vão visitá-lo, porém acabam vendo ele ser atacado por homens de armadura com metralhadoras. Posteriormente, passa-se para um flashback em que o grupo brinca num universo tão pasteurizado e colorido aparentemente saído dos Teletubbies; nesse dia, eles acabam descobrindo sem querer o lar secreto do malvado mafioso Mr. Big (Joe Pesci, numa participação inusitada e canastrona em que ele claramente se diverte com o exagero), que tem o maligno plano de viciar o mundo inteiro em drogas, começando pelos mais jovens. O trecho apresenta uma visão simplista de mundo que ilustra a excessiva inocência do artista. Falta tanto nexo que o vilão tem um exército formado por capangas uniformizados com emblemas de aranhas, nada sutil e totalmente fora da realidade, além de outras bizarrices narrativas que fornecem um banquete de vergonhas alheias.

O resto do enredo tem incongruências bastante estúpidas e sem função. Quando Michael Jackson chega a um clube abandonado e abre a porta, o lugar está magicamente vivo e cheio de gente com figurinos dos anos 1930. Inicia-se a sequência fantástica que resultou no videoclipe de “Smooth Criminal”, até hoje um dos mais emblemáticos do Rei do Pop. É interessante que, neste filme, a canção ganhou uma letra maior, dando mais contexto à sua história. São trechos como esse, em que o músico deixa transparecer o artista fora de série que era, que fazem o longa valer a pena.

Pena que, logo após a música, a trama siga com as mesmas besteiras extremamente inocentes de antes, resultando num cena final que envergonharia qualquer obra tokusatsu e carece de explicações. Encerra-se, portanto, um segmento cafona e com um nível de infantilidade ofensivo, deixando-o inverossímil.

O último segmento é, em suma, um epílogo do penúltimo porque todo ele é basicamente Michael Jackson cantando seu famoso cover de “Come Together” dos Beatles. É somente isso mesmo, o cantor num show. Porém, é uma bela música numa ótima versão, o que acaba inevitavelmente divertindo.

Como um todo, “Moonwalker” é desconexo e sem sentido, sem transmitir quais seriam as intenções de Michael Jackson com este filme. Narrativamente, é tão bobo e sem graça que não dá nem para chamar de amador. Visualmente, se gerou alguns clipes bizarros, também criou outros icônicos. Como ator e produtor de conteúdo cinematográfico, ele era ótimo cantor, compositor e dançarino, como poucos na história da humanidade. Era um Rei do Pop, sem dúvida, mas da música pop.

Bruno Passos
@passosnerds

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