Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 06 de novembro de 2019

Bate Coração (2019): uma nova abordagem de temáticas espíritas

Filme do diretor cearense Glauber Filho é uma divertida comédia baseada em temáticas espíritas.

Na última década, a temática espírita tem ganhado cada vez mais espaço nas produções cinematográficas nacionais. Em 2008, Glauber Filho lançava seu longa-metragem de estreia e um dos primeiros filmes a não só se encaixar nessa tendência, mas como um dos primeiros a ser considerado genuinamente cearense, “Bezerra de Menezes – O Diário de um Espírito”. Onze anos depois, o diretor e roteirista retorna com essa temática em seu filme “Bate Coração”, aproveitando-se de questões como vida após a morte e reencarnação para falar sobre assuntos como machismo, LGBTQfobia e doação de órgãos.

O longa, ambientado em Fortaleza, tem Isadora (Aramis Trindade), uma transexual dona de um salão de beleza, e Sandro (André Bankoff), um jovem rico, machista e homofóbico que trabalha em uma agência de publicidade. Durante uma festa de ano novo, Sandro sofre um ataque cardíaco e é preciso que ele passe por uma operação de transplante urgente. Assim, ele recebe o coração de Isadora, que morreu em atropelada no mesmo momento em que ele sofia o ataque cardíaco. Com seu espírito ainda preso no mundo material, Isadora passa a seguir o publicitário, influenciando suas escolhas e sua visão de mundo, tendo como objetivo transformá-lo em uma pessoa melhor.

Baseado nas peças teatrais “Acredite, um espírito baixou em mim” “O coração safado”, ambas do dramaturgo Ronaldo Ciambroni, “Bate Coração” traz consigo um teor cômico que foge dos padrões de filmes espíritas, que tendem a ser biográficos ou baseados em obras psicografadas, e a escolha de seguir pelo caminho do humor parece ter sido certeira. Mesmo que, em alguns momentos, esse humor seja previsível e não se encaixe totalmente em determinadas cenas – especialmente quando elas têm como foco principal diálogos entre Sandro e seu melhor amigo, Igor (Paulo Verlings) – é interessante observar como Glauber Filho, em seu roteiro, subverte a noção normalizada da comicidade, em que, quase sempre, a piada está em personagens marginalizados, em sua orientação sexual, ou cor, ou sexo, ou gênero. Aqui, ao contrário disso, a piada está nos preconceitos de Sandro e na forma (absurda) como ele enxerga a vida, e não no fato de Isadora ser uma mulher transexual.

Aliás, Isadora talvez seja o ponto alto do filme. A construção e caracterização da protagonista, com claras referências à Laerte, consegue apresentar uma personagem não caricata, com quem o público consegue facilmente se identificar e simpatizar. Essa simpatia por Isadora, além de acontecer por causa de sua caracterização, acontece pois Aramis Trindade foi capaz de vivificá-la muito bem. Sua serenidade e carisma ao entregar seus diálogos, a forma confortável e libertadora em que ele se porta nas roupas de Isadora, a maquiagem simples e a elegância de sua postura fazem com que ela transmita uma pacificidade cativante, possuindo uma aura encantadora ao seu redor. Porém, se Aramis atrai para o filme, André Berkoff parece não entender totalmente o personagem que está interpretando, tentando compensar isso com trejeitos exagerados que não conseguem convencer quem está assistindo. Por isso, mesmo sendo capaz de provocar o riso em determinados momentos, esse exagero e falta de profundidade de Sandro acaba fazendo com que mesmo quando ele passa por sua transformação de caráter e supera seus preconceitos, continue sendo difícil benquerer o personagem.

A performance de Berkoff é ainda mais prejudicada quando o filme passa a abordar a questão da doação de órgãos. Por ter sido produzido pela Estação Luz Filmes, produtora de filmes espíritas, a obra precisava abordar algum tema de importância social, e Glauber Filho, junto com a equipe de produção, decide seguir pelo caminho da doação de órgãos. Por mais que o tema seja realmente relevante e raramente tratado, especialmente no cinema nacional, a abordagem utilizada para lidar com o assunto não é acertada, ao apresentar, no meio do longa, um vídeo que convoca o público para a doação de órgãos, e o resultado disso é que a narrativa, no lugar de gerar comoção, ganha um cunho panfletário notável. Mas, mesmo assim, “Bate Coração” é um filme que diverte, e, ao mesmo tempo, atinge seu objetivo de tratar de assuntos atuais e extremamente relevantes.

Ana B. Barros
@rapadura

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