Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 03 de novembro de 2019

O Rei (Netflix, 2019): Sua Majestade, Timothée Chalamet

Apostando em um recorte mais intimista de uma das grandes histórias da humanidade, David Michôd faz de seu drama histórico "O Rei" um dos melhores originais já lançados pela Netflix.

Um campo repleto de corpos, com os sobreviventes do lado vencedor saqueando e executando os remanescentes do lado perdedor, uma trilha crescentemente trágica e lamentosa, uma fotografia densa, mas sem apelar para a escuridão. A cena inicial de “O Rei”, novo original da Netflix, rapidamente nos deixa a par do quão sombrios estão os tempos na Inglaterra em meados da Guerra dos 100 anos, assim como diz muito sobre o que se verá a seguir: uma das melhores produções que plataforma de streaming já disponibilizou.

Após a abertura, somos trazidos para a realidade que predomina nas duas horas e vinte minutos de duração do longa. Uma mesa onde conversam um aparentemente paranoico Rei Henrique IV (Ben Mendelsohn) e sua corte descontente, gerando hostilidade entre os que deveriam se apoiarem em prol da nação. Esse pensamento combativo e belicoso é o exato oposto do nosso protagonista, o jovem príncipe Hal, interpretado pela estrela em ascensão Timothée Chalamet. O filho mais velho do rei busca manter distância do centro de poder por não concordar com as atitudes beligerantes de seu pai, demonstrando um perfil mais conciliador e pacifista. A postura desagrada bastante o secto real, que trata de desqualificá-lo como um bêbado festeiro para que nunca chegue a almejar a coroa. Mas uma situação acaba mudando tudo.

Pouco sabemos sobre o que está acontecendo no reino, e o roteiro assinado pelo também diretor David Michôd (“Máquina de Guerra”) e por Joel Edgerton – que também atua e produz – não se preocupa em nos fornecer nada quanto a isso pois estamos encontrando nossa história no meio de um evento de proporções gigantescas. Em compensação, a narrativa principal é desenvolvida sem pressa, então vamos entendendo aos poucos as motivações dos personagens (em especial, claro, Hal) o que torna a história eficiente e pouco cansativa. Hal se intromete em uma batalha prestes a ocorrer entre seu irmão mais novo e postulante ao trono e um dos apoiadores do rei que se rebelou anteriormente. O diretor consegue, então, sintetizar em uma sequência o quanto o príncipe de Gales prefere apostar a sua própria vida do que ver seu povo batalhando entre si, além de entregar um dos combates de armadura mais realistas dos últimos tempos. O peso da briga não só nos atinge em cheio, como torna-se um fardo que Chalamet passa a carregar durante toda a projeção.

Aliás, é preciso aplaudir o desempenho do jovem ator em “O Rei”. Chalamet, distante dos papéis de adolescentes problemáticos que já o consagraram em Hollywood, emana uma imponência assustadora mesmo com seu físico esguio e de aspecto pueril. A mudança sentida apenas no olhar do jovem príncipe obrigado a se tornar rei, buscando maneiras de não seguir os caminhos do pai que tanto o abominam e que acabam o consumindo, é poderosa, assim como os acessos de raiva, ora comedidos, ora verdadeiramente explosivos. Na verdade, todo o elenco é digno de elogios – mérito também para Michôd por extrair isso de cada um -, contando com um Sean Harris irritantemente cativante com sua calma e trejeitos de falar e andar; um Joel Edgerton que pouco se conhece mas muito se confia, por aparentar ser o único verdadeiro amigo do rei (mesmo ele sendo inexplicavelmente esquecido durante parte do filme); e até as pequenas participações de Lily-Rose Depp, Ben Mendelsohn e Thomasin McKenzie estão no ponto. Apenas Robert Pattinson, que também pouco aparece em tela, até poderia ter seu mérito reconhecido em construir uma persona afetada para o Delfim da França. Mas sua participação final na obra o transforma de alívio cômico desejável em uma piada de gosto questionável dentro de uma história tão sóbria quanto a que está sendo contada.

A trilha sonora composta por Nicholas Britell (“Moonlight: Sob a Luz do Luar”) é um show a parte. Melancólica e serena como nosso rei em praticamente todos os momentos, ela mostra como apenas alguns segundos de exaltação máxima são suficientes para indicar a epicidade do que está por vir. E épico aqui não se trata necessariamente de algo estrondoso e entusiasmante, mas também de algo calmo e pacífico, em perfeita sintonia com os desejos do agora Rei Henrique V. Nosso protagonista, que tanto buscou encontrar caminhos de paz para as atribulações que a Inglaterra enfrentava, acabou sendo logo consumido pelo frenesi repentino de um jovem que crê não poder ser manipulado e embarcou rumo à guerra com a França.

Somos então levados a um dos momentos mais conhecidos da história: a Batalha de Azincourt. Sem entrar em maiores detalhes, é perceptível que o diretor falhou em mostrar a eficiência da estratégia que ele mesmo fez questão de enfatizar anteriormente. Mas é ao nos colocar dentro da batalha, lado a lado com o rei e seus seguidores, que ele brilha de verdade. Sua câmera treme e balança sem parar, tentando acompanhar o caos instaurado entre sangue e lama. Quando a visão se abre, é difícil compreender alguma coisa, pois ficamos tão perdidos quanto os que estão no meio do alvoroço, sem saber nem mesmo quem é aliado e quem é inimigo. Mas quando se foca em um único personagem e suas ações, Michôd retrata com louvor a brutalidade de uma batalha que conta apenas com espadas, arcos e a ferocidade de um povo inflamado pelo discurso de um rei totalmente certo de sua vitória.

Por fim, somos levados à um epílogo que funciona mais como um quarto ato da longa, porém ainda incompleta história do Rei Henrique V. Um momento de fechamento, revelações e atitudes (levemente) surpreendentes, que consagram ainda mais uma obra que, apesar das batalhas, se distancia da alcunha de “filme de guerra”. O que vemos ao fim é um drama histórico, recheado de frases bem escritas e atuações magníficas, e que embora não explore tão bem o subtexto histórico em questão, trabalha com excelência a mudança de um jovem inconsequente em rei repleto de responsabilidades, mas que precisa percorrer e aguentar sozinho essa dura estrada até completar sua transformação.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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