Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Greta (2019): o gay, a trans e o bandido

Filme nacional de enredo minimalista e fotografia caprichada traz um sensível Marco Nanini interpretando um personagem excluído socialmente.

Indesejados, perseguidos e humilhados. Inúmeros são os tipos colocados à margem nas relações sociais sem nunca deixarem de estar, sendo irremediavelmente parte constituinte dela. Figuras para as quais a sociedade aponta o dedo, não aceita bem ou mesmo rechaça. O cinema nunca se furtou da coragem de mostrar que mesmo as “ovelhas negras”, os “estranhos no ninho”, os pouco aceitos, recriminados ou vilanizados também têm suas histórias e dramas. Um exemplo foi a fase dos “favela movie” brasileiros, desde grandes produções, como “Cidade de Deus”, até as pequenas, como “Fuga da Rocinha”, e a recente série “Irmandade” da Netflix. Em cada uma delas, é possível ver que mesmo os bandidos, traficantes e presidiários têm seus próprios conflitos. Pela trilha dos marginalizados segue “Greta” de Armando Praça.

A sétima arte tem servido também para revelar o lado sensível das coisas, assuntos complexos ou temas considerados tabus. A arte tem esse aval e isso é civilizatório. Assim, o primeiro longa-metragem de Armando Praça, é representativo dessa potência de comover e gerar empatia. A trama minimalista acompanha o enfermeiro gay Pedro (Marco Nanini, de “Carlota Joaquina”), que tenta ajudar uma amiga transexual doente e se aproxima de um homem acusado de assassinato. O título vem da admiração do protagonista pela atriz Greta Garbo que também é um fetiche, nome pelo qual o protagonista gosta de ser chamado durante o sexo.

O roteiro é levemente inspirado na peça “Greta Garbo, quem diria, parou no Irajá”, escrita nos anos 1970 por Fernando Melo. No cinema, o texto intencionalmente deixa de lado o aspecto cômico para ganhar contornos melancólicos em tons neon, a partir da fotografia de Ivo Lopes Araújo, de “Tatuagem”. O contexto da história aqui também é diferente e se passa em Fortaleza. Porém, antes de pintar a tela com os belos cenários litorâneos da capital cearense, escolhe-se por dar à cidade tons mais escuros, imersos na precariedade dos hospitais públicos ou dos prédios de uma classe média.

Na narrativa, tudo é muito simples e brasileiro, especialmente a angústia de Pedro. Ele é um homem casmurro, desanimado e acima do peso, que deixa transparecer momentos de bondade, como ao cuidar da colega com falência renal ou quando dá o dinheiro do táxi para um paciente que recebeu alta e tem uma intermitente solidão. Seu desejo, despertado ao conhecer Jean (Démick López) – que chega ensanguentado no hospital, acusado de matar o marido de sua amante-, é repleto de dor e decepção, preenchido por escapes como o álcool e dissimulações como a sauna gay ou pragmatismo do dinheiro.

Trata-se de um senhor longe de poder viver plenamente sua sexualidade, que mesmo no trabalho barganha ameaças com seu chefe, também homossexual e aparentemente escondido. Ao redor do personagem, forma-se, então, um trio de excluídos completo por sua melhor amiga, Daniela (Denise Weinberg, um pouco solta na trama), e o jovem Jean, foragido da polícia.

Essa tríade não é exaltada em uma apologia utópica, embora haja sequências de pura magia e contemplação sobre a beleza das pequenas coisas, como nas cenas de sexo entre Pedro e Jean e na performance musical de Daniela. O “mundo cão” em que vivem os excluídos pelos moralismos, preconceitos e mesmo insuficiências da sociedade pesa graça e feiura de forma quase totalmente realista – portanto, repleta de magia e encanto. Assim, ainda que falte um arco melhor articulado, por vezes dando a sensação de que a história não vai para lugar algum,”Gretaconquista pelo olhar sensível sobre esse personagem masculino, idoso e gay, em tempos em que a temática ascende e aflora.

Vinícius Volcof
@volcof

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