Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 31 de outubro de 2019

As Bruxas de Salém (1996): uma vergonha histórica

A dramatização de um dos casos mais vergonhosos da justiça dos EUA oferece um olhar importante sobre os perigos e os riscos de uma histeria coletiva causados por uma acusação sem evidências. Apesar de alguns problemas narrativos, os questionamentos o fazem um filme relevante.

O caso conhecido como “o julgamento das bruxas de Salém” se tornou célebre no mundo todo pelos seus excessos e por evidenciar uma falha na maneira como pessoas eram condenadas nos Estados Unidos. Mais de 200 delas foram julgadas e 19 foram condenadas à morte, a maioria mulheres. É baseado nesse evento real que o filme “As Bruxas de Salém” busca seu argumento.

Adaptando uma peça de teatro sobre o evento, a trama se passa em 1692, na cidade de Salém. Após um dos homens do vilarejo testemunhar algumas jovens participando de um ritual vodu, alguns acontecimentos estranhos começam a afetar a região. Abigail Willians (Winona Ryder), uma das jovens que participou do ritual vê nisso a oportunidade de conquistar novamente o fazendeiro John Proctor (Daniel Day-Lewis), com quem ela já havia tido um caso no passado.

Com roteiro de Arthur Miller, responsável pelo espetáculo teatral também, a produção se propõe a utilizar a fatídica audiência para explorar outras pautas. A temática de “caça às bruxas” funciona como uma crítica a qualquer forma de opressão exercida por autoridades legais. Nesse sentido, a crítica é rigorosa e evidencia as fragilidades de um sistema penal motivado por histeria coletiva.

O peso de tal abordagem se mostra interessante ao atualizar um momento delicado do passado dos Estados Unidos, servindo como um ataque direto ao macarthismo, visto que Miller foi perseguido pelo governo durante a década de 1950. Ao mesmo tempo, a narrativa perde a oportunidade de lançar um olhar crítico à própria história que busca contar e acaba encontrando o conflito em uma questão romântica.

Se por um lado, o roteiro se beneficia de diversos elementos para que sua história consiga ser sustentada ao longo do filme. Concomitantemente a isso, é complicado não sentir que um fato histórico tão relevante serviu como pano de fundo para uma trama menos contestadora. Mais incômodo ainda é o olhar lançado à Abigail Williams, que teve como principal motivação de suas acusações um amor não correspondido. Se na época de seu lançamento, tal abordagem não era digna de críticas mais incisivas, aos olhos do século 21 o filme se torna consideravelmente mais datado.

Porém, superando esse incômodo narrativo, é possível notar um trabalho técnico que beira o impecável. A direção de Nicholas Hytner (“A Senhora da Van”) não chega a se destacar, mas consegue oferecer situações interessantes, em especial durante os julgamentos. As cenas são claustrofóbicas e confusas, uma tentativa de emular os horrores vividos por quem foi acusado de maneira injusta.

As atuações também aparecem como outro destaque positivo do longa. Winona Ryder tem aqui um dos grandes papéis de sua carreira e consegue corresponder a altura o que sua personagem exige. Embora o excesso de histeria tenha um motivo questionável, a atriz não impõe limites à construção de sua Abigail. Da mesma forma, Daniel Day-Lewis tem uma participação memorável, apesar de pouco aproveitada. Talvez se o texto não se perdesse em forçar um triângulo amoroso desnecessário, houvesse espaço para uma demonstração mais intensa de sua personagem.

“As Bruxas de Salém” é uma obra que sofreu com o tempo, mas que ainda possui uma trama necessariamente relevante. Se desconsiderado o romance que serve como motivador da história, é possível enxergar algumas discussões atuais e, por tanto, relevantes. Como um retrato histórico, ele perde um pouco por algumas escolhas de roteiro. Contudo, ao expôr a um grande público o julgamento realizado em 1692, serve para nos alertar que, em qualquer situação, uma “caça às bruxas” é sempre algo perigoso. 

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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