Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Vidas Duplas (2018): conflitos da era digital

Com uma história que gostaria de ser mais profunda do que realmente é, obra francesa não consegue desenvolver seu tema principal de forma orgânica durante a narrativa.

O debate sobre as formas que a internet pode mudar e já está mudando as nossas vidas e modos de consumo existe desde que a rede online foi criada. Uma discussão já realizada à exaustão em diversas áreas. É a partir dessa problemática que surge “Vidas Duplas”, dramédia do diretor francês Olivier Assayas. Na trama, acompanhamos Alain (Guillaume Canet), um editor de sucesso que ainda não aceita totalmente a nova era digital, e sua esposa Selena (Juliette Binoche), que compartilha a mesma visão do marido. Além deles, também temos Léonard (Vincent Macaigne), um escritor conhecido de Alain, que tenta convencê-lo a publicar seu novo manuscrito e apresenta uma visão da tecnologia bastante diferente daquela do editor e de sua esposa.

Durante a trama, temos diversos diálogos sobre temas que tem a ver com tecnologia e o mercado literário: se a forma de escrever mudou depois da internet; como as pessoas pagam caro em objetos eletrônicos, mas tem resistência a pagar para consumir arte; a diferença entre ler um livro impresso ou em dispositivos móveis e se isso muda o valor da leitura; e outros assuntos que se relacionam aos já citados. Além disso, Assayas, também roteirista da obra, aborda assuntos como infidelidade e amor.

O filme não apresenta uma estrutura convencional: o foco é nos assuntos que ele retrata, não nos personagens em si. Sendo assim, cada cena aborda um tema específico, deixando a impressão de que a narrativa está dividida em capítulos, mesmo que o diretor não estilize a narrativa dessa forma descaradamente. Logo na primeira cena, os espectadores já são jogados em um debate acalorado entre Alain e Léonard, mesmo sem saber nada sobre eles, o que pode ter efeitos contrários: ou envolver o público desde o primeiro momento, se ali estiver sendo tratado um assunto de seu interesse, ou afastar aqueles que apreciam um pouco mais de desenvolvimento dos personagens antes de entrar de cabeça em seus conflitos.

Apesar de tentar abordar os temas em contextos diferentes, já no segundo ato os debates começam a se tornar cansativos e repetitivos. A produção tenta trazer boas reflexões, mas é o tipo de reflexão que a maioria de nós já está cansada de ver outras pessoas tentando causar – em outros filmes mais coesos, livros, ou até mesmo em textos nas redes sociais. Essa insistência do diretor em  levantar o mesmo assunto em todas as cenas e a todo custo acaba criando situações com pouquíssimas doses de realismo.

Um bom exemplo é o momento em que dois estranhos, em uma roda de conversa sobre o novo livro de Léonard, começam a falar coisas que se complementam em perfeita harmonia. O texto possui uma grande inconsistência, pois enquanto consegue construir alguns diálogos muito bem, em outros pontos contêm falas que não se parecem em nada com o jeito que as pessoas realmente interagem. O filme também é bastante radical e superficial em suas ideias de como a internet vai mudar nossas vidas: ainda no primeiro ato, somos apresentados à Laure (Christa Théret), colega de trabalho de Alain,  basicamente inserida na história apenas para afirmar incessantemente que tudo que está fora da web vai acabar. Essa abordagem insinua que Assayas talvez não entenda tão bem assim do tema que ele aborda com tanto afinco.

Aos poucos, vamos descobrindo mais sobre os personagens, porém seus dilemas fora do mundo tecnológico não são muito interessantes. Toda a discussão ao redor da infidelidade não conversa muito bem com os demais aspectos da trama. Além disso, algumas cenas tentam criar uma carga dramática que se encerra, ou com cortes bruscos que não permitem aos espectadores absorverem aqueles momentos, ou com os personagens tendo reações que não condizem com as revelações feitas entre eles, algo que se torna frustrante no decorrer da narrativa.

Um dos pontos positivos se encontra nas atuações, principalmente de Guillaume Canet e Juliette Binoche, que conseguem adicionar camadas aos seus papéis através de suas próprias performances. Os planos e movimentos de câmera também são muito bem escolhidos: os personagens estão sempre em movimento, explorando as locações e utilizando com eficiência a técnica de walk and talk para que as cenas não sejam estáticas e monótonas visualmente.

Com um primeiro ato promissor, mas perdendo a mão nos dois subsequentes, Vidas Duplas poderia ter sido um filme muito mais interessante se o tema fosse abordado com uma mão mais leve. Fica a torcida para que a próxima obra do diretor seja uma recupere a forma que nos apresentou ótimas obras como “Personal Shopper” e “Acima das Nuvens”.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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