Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 07 de outubro de 2019

Heróis Modestos – Cinema de Curtas da Ponoc Vol. 1 (2018): uma ode à superação humana

Antologia de curtas tem como tema central o heroísmo inerente aos humanos e sua capacidade de superação perante adversidades, mesmo as mais mundanas.

Fundado em abril de 2015 por Yoshiaki Nishimura, ex-produtor do estúdio Ghibli, o estúdio Ponoc lançou seu primeiro longa “Mary e a Flor da Feiticeira” em 2017. Trazendo vários animadores e funcionários do antigo local de trabalho, Nishimura oferece uma nova proposta com “Heróis Modestos: Cinema de Curtas da Ponoc Vol. 1”, uma antologia de três curtas gravitando ao redor do tema de heroísmo e coragem em pessoas comuns.

O primeiro curta é chamado “Kanini & Kanino”, que são dois seres aquáticos humanoides. Ambos crianças e irmãos, o casal vive com o pai já que a mãe saiu para dar à luz conforme suas tradições. A aventura começa quando uma forte corrente arrasta o pai para longe, e a dupla se pega precisando encarar o desconhecido para sobreviver. É uma animação de alta qualidade técnica, com uma mistura orgânica de animação 2D e por computador que resulta em cenários de cair o queixo. O que é feito com a água aqui é especialmente fantástico. Dirigido por Hiromasa Yonebayashi, também responsável pelo primeiro filme do estúdio, o curta faz bom uso da diferença de tamanho dos protagonistas quando comparados a um peixe, engradecendo a figura ameaçadora do predador. Narrativamente, ainda deve ser destacado o fato de que praticamente não há falas aqui. Os personagens apenas dizem seus nomes e o fazem num idioma de sua própria espécie, mas o que estão dizendo é sempre claro. A antologia abre com um belo conto de sobrevivência e coragem perante mistérios.

No segundo curta, “Life Ain’t Gonna Lose” (em inglês mesmo, e é algo como um jeito informal de dizer “a vida não vai perder”, em tradução livre), nota-se rapidamente que é uma obra feita por outra equipe criativa, pois o traço e o estilo da animação mudam drasticamente. Os personagens, agora humanos vivendo na sociedade japonesa contemporânea, não têm linhas fortes ao redor de suas silhuetas. Isso soma-se ao fato de não haver peso nas cores básicas rendendo uma diluída fluidez de encher os olhos. Dirigido por Yoshiyuki Momose (“Space Station No. 9”), este trecho conta a história de Shun, um garoto que nasceu com uma terrível alergia a ovos, que pode rapidamente matá-lo se exposto a até mesmo outra pessoa que consumiu o alimento recentemente, devido ao risco de pequenas partículas de suas salivas poderem cair no menino. Acompanhamos a luta e o esforço dele e de sua mãe para mantê-lo a salvo, o que resulta em imenso trabalho e vários sacrifícios que pegam o espectador pelo coração sem exageros. Um bom exemplo é a cena em que ambos estão consultando o cardápio de um restaurante e comparando tudo com uma tabela de alergênicos – e a mãe acaba na conclusão de que pedirão apenas um suco. É um trecho sutil, mas tão bem animado, que percebe-se como é difícil para a mãe ter que impor restrições a uma criança ainda muito jovem para entender os riscos a sua volta. Momose consegue ilustrar o sentimento de uma história sobre rotina mesclada com constante preocupação e genuíno amor entre mãe e filho, e ainda acha tempo para tirar uma boa onda com a qualidade narrativa e técnica dos traços ao ilustrar uma passagem de tempo com uma esperta montagem. Nela o protagonista faz várias atividades ao fundo enquanto uma colher fincada num sorvete em primeiro plano vai, aos poucos, se inclinando conforme o mesmo derrete.

O último curta é chamado “Invisible” (invisível, em inglês) e é dirigido por Akihiko Yamashita, que possui grande experiência em animação, mas poucas vezes trabalhou como diretor. Entretanto, faz um ótimo trabalho aqui ao entregar o curta mais metafísico da antologia. A história gira ao redor de um homem que é invisível e extremamente leve. Ele precisa andar com um extintor de incêndio para segurá-lo ao chão e apenas suas roupas são visíveis. Ele começa na sua rotina de se arrumar para o trabalho e lá o vemos sendo ignorado. Daí nascem as questões ao qual o curta se propõe: discutir solidão e isolamento. É uma narrativa extremamente metafórica que exige que o espectador a absorva além da camada literal da apresentação visual. Mal há falas aqui, mas elas contribuem ao peso de exclusão sentido pelo protagonista. Yamashita consegue compor cenas que transmitem a melancolia sem necessidade de palavras – um trabalho excelente no quesito de mostrar e não dizer o que está acontecendo. É um feito louvável conseguir transmitir emoções tão humanas num personagem que não tem um rosto onde se possa ler expressões e sem um pingo de exposição. A metáfora atinge seu ápice na cena em que o homem invisível perde a âncora com o mundo, onde há uma ótima mescla de aflição, agonia e tristeza. Apesar de tudo, é uma obra sobre atos heroicos, e ocorre um que encerra a sessão com uma nota emocional positiva.

É uma pena que o mundo foi privado do que teria sido o quarto curta desta antologia. Isao Takahata, diretor de obras incríveis como “O Túmulo dos Vagalumes” e um dos fundadores do estúdio Ghibli, estava envolvido na produção mas infelizmente veio a falecer. Takahata é, para a animação japonesa, um herói. E tendo atos heroicos oriundos de pessoas comuns (modestas), a obra conquista o espectador ao longo de seus 53 minutos. É uma ode à capacidade humana de se superar e de encarar obstáculos, mesmo em coisas mundanas. Es0se tema principal amarra bem os três contos, num pacote temático único. “Heróis Modestos: Cinema de Curtas da Ponoc Vol. 1” é um projeto interessante que dá a chance a novos diretores apresentarem seu trabalho e sua capacidade. A Netflix também disponibilizou “Heróis Modestos do Estúdio Ponoc”, que basicamente consiste em depoimentos de Nishimura discorrendo sobre os curtas e como o projeto nasceu, resultando em interessantes 21 minutos de informação extra para os curiosos. Um bom acerto do estúdio que traz esperanças não só de novos longas, mas também de outros volumes.

Bruno Passos
@passosnerds

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