Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Depois do Casamento (2019): segredos de família

Remake americano do renomado e homônimo filme dinamarquês de 2006 consegue surpreender e comover o espectador na medida certa.

Não é de hoje que existe a discussão sobre a necessidade de remakes hollywoodianos de filmes estrangeiros. Quando a maioria das obras de onde as versões americanas tiram suas inspirações já são boas o suficiente e não precisam de uma repaginada para expandir sua história, porque continuam investindo com tanto afinco em tais produções? Alguns acreditam que isso se dá ao fato dos americanos não gostarem de filmes que não sejam na sua língua nativa e preferirem se identificar com personagens que poderiam estar na realidade deles, pois é o que acontece normalmente. Algo que nós, estrangeiros para eles, não entendemos, pois estamos sempre do outro lado da moeda. Do espanhol “REC” que virou “Quarentena” até o francês “Intocáveis” que virou “Amigos Para Sempre”, é comum que tais adaptações acabem frustrando os fãs das obras originais. Felizmente, “Depois do Casamento” consegue não apenas ser uma adaptação bem-sucedida do filme dinamarquês de 2006 de mesmo nome, dirigido por Susanne Bier, como também amplia os conflitos presentes na narrativa original.

Na nova versão, comandada por Bart Freundlich, seguimos a história de Isabel (Michelle Williams), uma americana que cuida de um orfanato na Índia que está precisando urgentemente de doações. Ela é chamada para ir até Nova York conhecer Theresa (Julianne Moore), uma mulher de negócios bem-sucedida que está interessada em fazer uma doação. Theresa convida Isabel para o casamento de sua filha, Grace (Abby Quinn), e a partir daí o passado dos personagens colide com o presente enquanto revelações são feitas sobre a origem de suas ligações uns com os outros.

Uma das maiores mudanças do original para o remake é a troca de gênero das protagonistas: no original, as personagens de Williams e Moore foram interpretadas por Mads Mikkelsen e Rolf Lassgard, respectivamente. Uma mudança que poderia ser trivial acaba se tornando algo que deu espaço para a narrativa evoluir de forma positiva, pois essa troca acaba concedendo às personagens um dilema moral diferente e mais aprofundado daquele apresentado na obra dinamarquesa. O filme de 2006 também tem personagens multifacetados e bem construídos, mas de certa forma alguns desenrolamentos acontecem de maneira passiva para o personagem de Mikkelsen e ele lida apenas com as consequências dos atos de outras pessoas. Aqui, a personagem de Williams tem mais controle sobre sua própria jornada.

Isso acontece até com personagens secundários, como Jonathan (Alex Esola), marido de Grace. No original é apresentado um impasse entre ele e a esposa que parece bastante conveniente para a narrativa, enquanto aqui são mostradas as consequências de um casamento de duas pessoas bastante jovens e que ainda estão descobrindo muito sobre si mesmos. O mesmo se dá com Oscar, personagem de Billy Crudup, marido de Theresa: acompanhamos um pouco da sua carreira como artista plástico e sabemos mais detalhes do seu passado.

Tirando as novas nuances morais inseridas na versão americana, o filme é praticamente um remake shot-for-shot do original, com composições de cenas e diálogos quase idênticos. Isso causa estranhamento em alguns momentos, quando por exemplo a personagem de Grace pergunta para Isabel se ela tem celular (sim, o aparelho, e não um número de telefone). Se essa já poderia ser uma pergunta considerada estranha em 2006, hoje em dia é quase impensável que alguém forme tal frase. A montagem por vezes decepciona, com algumas cenas que são cortadas de forma abrupta, quando poderiam ter seguido por mais tempo para aprofundar melhor alguns confrontos e diálogos.

“Depois do Casamento” na maior parte não decepciona nas suas atuações, com destaque para Julianne Moore, que em uma das suas cenas finais no filme entrega uma interpretação que move o espectador. A atriz sempre se joga de corpo e alma em seus trabalhos. Talvez o único que não se dedique tanto assim seja Billy Crudup, mas fica a dúvida se foi um pouco de desleixo do ator ou escolha da direção que seu personagem fosse mais austero. De qualquer forma, fica um pouco discrepante quando todos ao redor dele estão em tão boa forma, inclusive a quase novata Abby Quinn, que interpreta uma ótima Grace. Michelle Williams, apesar de apresentar alguns momentos de reações estranhas, na maior parte entrega uma atuação bastante efetiva, capaz de falar muita coisa apenas com os olhares que lança para os outros personagens.

Os conflitos da narrativa são, em sua maioria, bem construídos: na primeira cena entre Isabel e Theresa, é palpável como as duas têm prioridades bastante diferentes, e esse sentimento perdura durante o filme. A versão americana, mesmo tendo a mesma duração de duas horas do original dinamarquês, consegue desenvolver um ritmo melhor e menos cansativo. Além disso, com a mudança de gênero das personagens principais, também fica em pauta a sororidade (ou, em alguns momentos, falta dela) que existe entre as três mulheres. Essa nuance é inserida no roteiro de Freudlich de maneira bastante sutil. Os aspectos técnicos também são bastante competentes: a cinematografia de Julio Macat utiliza muito bem os tons quentes na obra (e não apenas nas poucas cenas que se passam na Índia, clichê já utilizado ao extremo), e a trilha sonora de Mychael Danna consegue comover e construir suspense com êxito.

Uma obra bastante redonda e competente, “Depois do Casamento” é um exemplo de como é possível desenvolver uma adaptação de forma correta e fazendo mudanças que, em sua maioria, elevam o status da narrativa.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

Compartilhe