Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Midsommar – O Mal Não Espera a Noite (2019): a necessidade de pertencer

Depois de explodir com “Hereditário”, Ari Aster reafirma sua coragem de reinventar o terror através de uma obra igualmente desafiadora.

Em 2018, o estreante Ari Aster impressionou o mundo com o memorável “Hereditário”, terror que surpreendeu o público ao renunciar diversos clichês do gênero em uma experiência única e assustadora. Extremamente atmosférico, o filme aterrorizou muitos através de uma trama inteligente que misturava medos e deficiências mentais, lançando a carreira de um potencial novo mestre da sétima arte. Um ano mais tarde, o diretor retorna com o igualmente impactante “Midsommar- O Mal Não Espera a Noite”, provando, através de sua perturbadora criatividade, que não teve uma mera sorte de principiante.

Quando uma terrível tragédia familiar abala sua vida pessoal, a universitária Dani (Florence Pugh, “Lutando pela Família“) recebe um inesperado presente de seu namorado, Christian (Jack Reynor): um convite para conhecer a simpática Harga, pequenina vila sueca que abriga um centenário festival local, atração que é objeto de estudo e interesse de amigos do seu “amado”. Cada vez mais afastados entre si, os membros do casal entendem a viagem como uma necessária chance de reconciliação, mas a medida em que se deparam com rituais gradativamente mais escatológicos e horripilantes, passam a perceber que existe um motivo muito mais obscuro para estarem ali. Assim como em seu primeiro longa, Aster adota mais uma vez temas bastantes banais como ponto de partida, extraindo fascinantes bizarrices dos relacionamentos humanos para desenvolver uma obra inesquecível e diferente de tudo que vem sendo feito no atual mercado cinematográfico.

Reforçando sua inconfundível assinatura, o diretor investe na construção de um ambiente extremamente imersivo, evocando o estilo do grandioso Stanley Kubrick da melhor maneira possível. Distante do sombrio Hotel Overlook de “O Iluminado” (prestigioso clássico dirigido por Kubrick), no entanto, aqui ele usufrui com maestria da belíssima fotografia do polonês Pawel Pogorzelski (além de uma eletrizante trilha sonora), recebendo o espectador em um campo florido esplendoroso e munido de um céu azul estonteante. Acolhedor, ele cria o contraste perfeito em relação a um prólogo consideravelmente sombrio, enganando a plateia com uma calorosa aldeia que logo se transformará no palco de um violento culto. A partir daí, segue sustentado por longas e angustiantes sequências repletas de recursos gráficos (estes que, felizmente, nunca se excedem perdendo força), confiando à atmosfera a função de transmitir medo – despreocupado em abrir mão dos saturados jump scares.

Alinhado à ótima direção, o roteiro também assinado por Aster se mostra igualmente afiado, constantemente fornecendo pistas acerca dos tenebrosos acontecimentos que estarão por vir (vale ficar de olho nos desenhos espalhados pela aldeia) e aprofundando a interessante cultura do povo hostil. Seu maior mérito, todavia, se dá pela excelente associação entre o assunto universal no qual Aster se baseia e o folclore exótico que é apresentado ao público. Arrasada, Dani é uma jovem com diversas dificuldades na manutenção de relações saudáveis, distante de seus parentes e cada vez mais à deriva de seu namorado. Instável, sofre com sérias crises de ansiedade, obrigada a encontrar sustento em remédios enquanto o companheiro demonstra não enxergar seus grandes problemas. Sendo assim, é a partir da perspectiva dessa complexa personagem que toda a narrativa se desenrola, decifrando suas incontáveis camadas enquanto a afasta dos parceiros de viagem e a aproxima dos peculiares aldeões.

Uma vez passada a estranheza das primeiras tradições, Dani passa a enxergar naquela sociedade uma possível família, identificando na união entre seus membros a ajuda de que tanto precisa. Mesmo severamente deturpado, arcaico e fortemente inspirado em ideais de eugenia (teoria horrenda que sustenta que determinadas “raças” humanas são superiores a outras), reside ali um forte senso de companheirismo, sentimento que seduz a personagem de Pugh, disposta a fazer parte daquele universo não importe o quão sujas fiquem suas mãos de sangue. Dessa forma, Aster traduz o terror como pano de fundo de uma história sobre como a solidão nos guia a encontrar as formas mais desesperadoras de afeto.

Nada disso seria possível, no entanto, sem o exemplar desempenho de Florence Pugh, atriz que não deixa nada a desejar mesmo se comparada à excelente Toni Colette que encontramos em “Hereditário”. Um pouco menos explosiva que a protagonista da produção de estreia de Aster, ela varia com perfeição da sutileza à catarse, montando, com sua Dani, crises de ansiedade intensas e incrivelmente naturais, dominando uma vasta gama de expressões faciais, que vão do horror à euforia, de forma bastante crível. Embora não tão surpreendente, o restante do elenco principal também merece atenção, pois entende perfeitamente a intenção do diretor em involuir os coadjuvantes em função da evolução de Dani. Por conta disso, fazem da simplicidade a marca de suas personagens, tendo em esteriótipos – tais como o carismático nerd de William Jackson Harper (“The Good Place”) e o hilário mulherengo de Will Poutler -, ou até mesmo em maniqueísmos – exemplificados pelo odioso personagem de Jack Reynor -, sua fórmula para cativar o público.

Infelizmente, é verdade que algumas cenas se estendem demasiadamente, perdendo um pouco o impacto e gerando um leve cansaço. Todavia, isso não chega nem perto de diminuir as inúmeras qualidades que “Midsommar – O Mal Não Espera a Noite” possui, terror que permanece na cabeça da plateia muito após a sessão. Denso e repleto de significados ocultos (perfeito para ser reassistido diversas vezes), foge aos padrões e deve desagradar alguns desavisados, mas com certeza será imortalizado como um novo clássico cult do gênero. Longa vida a Ari Aster!

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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