Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Rede de Abuso (Netflix, 2019): cultura do estupro

Documentário da Netflix aborda caso em que a tradição do futebol americano em escolas dos Estados Unidos incentiva abusos ignorados por autoridades. Redes sociais se tornaram um elemento essencial para denunciar essa prática.

O termo cultura é carregado dos mais diversos sentidos. Um dos mais importantes deles se baseia na forma como uma sociedade se comporta ao longo do tempo, ou seja, desenvolve um jeito de se portar para determinada prática social difundida ao longo dos anos, sendo aceita, e praticada, pelas novas gerações, que não as questionam, apenas as seguem. Afinal de contas, se sempre foi assim, deve estar certa. Pensando assim e olhando para a sociedade norte-americana, onde a prática de esportes é incentivada desde a infância – principalmente nas escolas – e tem um peso importante na economia do país, o documentário “Rede de Abusos”, distribuído pela Netflix, expõe o lado mais perverso da tradição do futebol americano entre os jovens. O endeusamento de jogadores, adolescentes transformados em heróis locais, cria uma subcultura de abafamento e conivência com abusos e crimes cometidos, tudo para proteger o esporte.

Essa história começa com uma festa na cidade de Steubenville, no estado de Ohio, no ano de 2012, onde os jogadores do The Steubenville Big Red, Trent Mays e Ma’lik Richmond, acabam sendo acusados de estuprar uma estudante. Causando um longo debate no condado, algo bem explorado no documentário, enquanto vemos as pessoas mais velhas, torcedoras do time local, acusarem a garota por ter bebido demais e se oferecido aos jogadores. Afinal de contas ninguém a forçou a ir para a trágica festa, dizem alguns. Os próprios garotos e garotas da cidade falam abertamente em estupro. Méritos aqui para a diretora do documentário, Nancy Schwartzman, e sua sábia decisão de manter anônima a identidade da garota abusada, omitindo seu nome ou imagens suas.

Fazendo o caminho das investigações de 2012, o documentário da Netflix investe em uma narrativa interessante por primeiro mostrar um lado da história, a respeito de como ocorreu o crime e toda a qualificação negativa quanto ao comportamento da garota abusada, e depois o outro onde vemos o histórico dos jovens nas redes socias e seus comportamentos permissivos e abusadores. Tudo isso se mistura em um crescente chocante e revoltante. Schwartzman mostra o peso decisivo das redes sociais no decorrer dessa história. Elas foram essenciais para entender os acontecimentos minuto a minuto, se tornando prova efetiva para solucionar o crime, tudo isso graças ao trabalho da blogueira Alexandria Goddard, responsável por realizar extensa pesquisa nas redes sociais dos envolvidos no ocorrido. Seu trabalho, mais tarde alcançando projeção nacional – com a ajuda da grande mídia e de hackers do grupo Anonymous – mostram diálogos, vídeos e fotos de como a garota foi tratada durante o estupro e como ninguém mais fez nada para evitar o ocorrido.

“Rede de Abusos” se enquadra em uma leva recente de documentários que ajudam a entender a sociedade norte americana em vários aspectos. No mesmo ritmo do recente “No Coração do Ouro”, da HBO, onde é mostrada a conivência de autoridades contra abusos sexuais do médico da seleção americana de ginástica, aqui vemos a mesma coisa. O mais importante é proteger o time de futebol local, fonte de orgulho para a cidade. As consequências negativas são o de menos. Como cita uma jornalista durante a narrativa: “Essa cidade do futebol americano está colocando as meninas em risco”. Após o caso ganhar repercussão nacional e protestos serem convocados, conhecemos a história de diversas garotas, agora com coragem de contar suas histórias, revelando casos de estupros cometidos por jogadores do time local ao longo de décadas, sem ninguém fazer nada antes.

Além de mostrar um comportamento degenerativo, que cobra um alto custo em nome do futebol americano, principalmente contra as mulheres, em “Rede de Abuso” vemos também o desenvolvimento de uma outra cultura e seu lado negativo, a do uso constante das redes sociais, principalmente pelos mais jovens, sempre relatando tudo que fazem no Facebook, Twitter e Instagram. Como assinalado pelo policial responsável por investigar o caso, J.P. Rigaud: “Os celulares contaram a história”. Eles ajudaram a cavar a cova de quem se vangloriava pelos feitos cometidos, sem autocrítica dos seus atos. Esses lados ruins do novo comportamento do mundo digital, aliados com a crítica à cultura do esporte nos Estados Unidos, tornam o documentário uma obra digna de reflexão, trazendo um debate às vezes colocado na periferia da nossa visão, mas necessário, cada vez mais.

Filipe Scotti
@filipescotti

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